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MIDIATIZANDO SABERES E PODERES EM UMA TRAMA HÍBRIDA DE DESIGUALDADE E EXCLUSÃO

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Por: Cruz, Fernanda Guimarães
Número 65

Resumo: As reflexões presentes, nesse artigo, são balizadas pela pesquisa empreendida durante o mestrado, cujo objeto era o papel da socialização midiatizada operada pela televisão em instituições que acolhem adolescentes não-infratores em Porto Alegre (RS-Brasil). Nesse momento, objetivo revisitar alguns pontos dessa problemática, bem como encaminhar novas articulações norteadoras da pesquisa de doutorado. Procuro compreender o processo de desinstitucionalização desses adolescentes que se estabelece em decorrência das reconfigurações nos sistemas de exclusão e desigualdade a partir das relações entre poder e saber. Nesse processo, a televisão ocupa um papel crucial, já que permanece atualizando/acionando, no ambiente do lar, saberes e aprendizagens internalizados durante o período de acolhimento institucional e, conseqüentemente, no processo de construção identitária desses adolescentes.

Abstract: The presents reflections, in this text, are led by the research undertaken during the master's studies, which had as object the paper of socialization through television-operated media among non-infracting adolescents who live in shelter institutions in Porto Alegre (RS-Brazil). At this moment, I intend to revisit some issues from this set of problems and guide new articulations for the doctorate's research. My purpose is to understand the adolescents' deinstitucionalization process that is stablished as a result of the reconfigurations on the sistems of exclusion and inequality on the relations between power and knowledge. In this process, the television performs a crucial role, since it keeps on updating/activating, at home, knowledge and learning interiorized during the institution shelter and, consenquently, on the adolescents's identity construction process.

 

Introdução

O presente artigo objetiva refletir sobre as reconfigurações nos sistemas de exclusão e desigualdade a partir das relações que hoje se estabelecem entre poder e saber. Esse outro olhar sobre a desigualdade e a exclusão passa necessariamente pelo papel que os meios de comunicação assumem enquanto produtores e disseminadores de referenciais sociais no processo de conformação das identidades dos sujeitos. Para sustentar tal reflexão, me permito olhar para o meu objeto de pesquisa no doutorado, mais especificamente, para o que estou chamando de “desinstitucionalização” de adolescentes não-infratores de instituições de acolhimento. Tendo como base a pesquisa realizada durante o mestrado1 junto a três instituições de acolhimento da cidade de Porto Alegre (Rio Grande do Sul-Brasil), Casa-Lar Adventista2, Lar de São José3 e Abrigo João Paulo II4, que têm como proposta abrigar jovens não-infratores em tempo integral, até o momento desses completarem a maioridade, busco, nesse texto, retomar questões tratadas na dissertação e encaminhar novas articulações e reflexões norteadoras da pesquisa empreendida atualmente. Dessa forma, é importante ressaltar que os dados empíricos analisados, durante o mestrado, referente às especificidades da socialização operada pela televisão em instituições de acolhimento, me servem de base para, nesse momento, pensar no “movimento de saída” dos adolescentes desses espaços, sobretudo, no que se refere ao potencial da TV para permanecer atualizando/acionando, no ambiente do lar, saberes e aprendizagens internalizados durante o período de acolhimento institucional.

A desinstitucionalização: uma trama complexa de saberes e poderes

A presença de novas tecnologias, em especial, a forma como essas redefinem a forma dos sujeitos se relacionarem, de aprenderem e, portanto, de estarem em sociedade tem contribuído para um deslocamento dos saberes dos lugares, pelos quais esses mais tradicionalmente circulavam. Os meios de comunicação, nesse processo, desempenham papel crucial, já que reorganizam e são responsáveis em grande medida, como observa Jesús Martín-Barbero (2003a;2006), pela “mutação” dos modos de circulação desses saberes. Isso significa que o saber, que sempre foi uma “fonte chave de poder” extrapola o âmbito dos espaços sagrados que até então eram responsáveis pela sua disseminação e legitimação, bem como deixa de ser monopolizado por determinadas figuras sociais que os detinham e administravam da maneira que pensavam ser a mais adequada ou socialmente aceita. Família e escola, instituições tradicionalmente responsáveis por gerir esses saberes, na contemporaneidade, acabam perdendo seu espaço e, inclusive, vêem sua “autoridade ameaçada” em função de outras formas de aprendizagens, próprias do ambiente midiático, que produzem “saberes-mosaicos”.
           
Diante desse cenário, a sociedade passa a conviver com outras formas de aprendizagem, para além daquela propiciada pela cultura letrada. Esta mutação, Martín-Barbero (2003a) observa a partir de dois movimentos: descentralização e disseminação. O processo de descentralização dá conta da circulação dos saberes por fora da escola e dos livros, enquanto que a disseminação faz referência ao desaparecimento das fronteiras que separavam os conhecimentos acadêmicos dos saberes comuns. Com isso, os saberes que servem de base para o processo de socialização das novas gerações advêm tanto das instituições “formais”5 (escola, família, igreja, etc.) como, especialmente, da mídia. São esses “saberes-mosaico”, constituídos de fragmentos dispersos que são capturados em cada espaço de socialização que os adolescentes circulam. Dentre essa multiplicidade de atores e instituições responsáveis pela aprendizagem e internalização de normas, valores e princípios morais, a mídia acaba por também ocupar um papel representativo tanto na circulação de saberes presentes em outras instâncias como também na configuração e legitimação de saberes próprios (instituídos pela ambiência midiática). E essa circularidade não pára por aí. Essa trama/teia por onde esses saberes são disseminados e ganham materialidade é ainda mais complexa do que a primeira vista possa parecer. Os saberes são multiplicados em cada interação que os sujeitos estabelecem com os seus grupos de pares e colegas, os familiares, professores, etc. Através dos fios dessa trama os saberes vão se complementando, como um verdadeiro “quebra-cabeças”, cuja montagem depende de cada ator que conforma essa trama comunicacional. “Pues los medios no sólo descentran las formas de transmissión y circulación del saber sino que constituyen un decisivo ámbito de socialización/proyeción de pautas de comportamiento, estilos de vida y patrones de gustos” (Martín-Barbero, 1996, p.19).

Os processos de descentramento e disseminação constituem o primeiro passo para a compreensão do processo de “desinstitucionalização”, que de uma maneira um tanto incipiente eu definiria, nesse momento, a título de compreensão, enquanto uma esfera na qual o adolescente passa a viver depois do desligamento institucional. Mas claro está, que o meu interesse está voltado para a desnaturalização desse conceito, sobretudo, em função das particularidades que esse assume por conta do processo de midiatização, que configura “alterações substantivas” nas práticas e representações sociais, operando transformações não só na maneira das pessoas se comunicarem ou interagirem, mas principalmente nas formas dos sujeitos aprenderem e, portanto, se socializarem. Isso significa, que os meios de comunicação passam a compor a trama de atores e instituições que conformam a desinstitucionalização desses adolescentes. Ou seja, é possível pensar no papel da mídia tanto na “formação” desses adolescentes, no âmbito próprio da instituição, como também enquanto eixo articulador desses saberes oriundos de “diferentes” esferas sociais (instituição e lar).

A desinstitucionalização, portanto, se constitui enquanto esfera que não existe em termos concretos, mas sim na ordem dos discursos. Nesses termos, é possível pensar nessa enquanto produto de uma trama que, embora, em sua essência, seja heterogênea é conformada por sujeitos e instituições que orientam seus esquemas/estratégias de ação em torno de um objetivo comum: a socialização de adolescentes. A partir de uma perspectiva comunicacional, essa trama é por mim observada a partir do papel que a mídia desempenha nessa teia discursiva, e, portanto, me interessa observar como esses sujeitos (os próprios adolescentes, seus familiares e os profissionais que trabalham nas instituições) e determinadas instituições (instituição de acolhimento e família) compreendem e fazem uso do que eu chamo de “potencial socializador” da mídia. Isso porque, nesse cenário que começo a vislumbrar ou tatear, a mídia possivelmente se constitui enquanto interface entre dois domínios: institucional e familiar.

No entanto, nesse momento, me interessa pensar que essa trama na medida em que é conformada por saberes, é conseqüentemente disseminadora de poderes, portanto, de forças (convergentes ou não) e de tensões. Poderes esses que orientam ações e estratégias voltadas para a formação desses adolescentes. Essa trama discursiva que conforma a desinstitucionalização representa a transformação de uma “configuração” tradicional (constituída exclusivamente pela relação entre as instituições não midiáticas), em outra mais flexível e complexa, composta pela interdependência entre “instituições formais” (instituição de acolhimento, família, escola, igreja, etc.) e o midiático. Essa outra “configuração”, conforme observa Elias (2005), me permite compreender a relação formal-midiático, que pode ser tanto de complementaridade como de conflitos e rupturas.

Essa trama discursiva que vai se constituindo a partir da posição que os sujeitos e instituições assumem em relação ao potencial pedagógico da mídia, sobretudo, no que se refere à configuração e rememoração de referenciais sociais, é engendrada por uma “mecânica de poder” muito específica, que penetra na “textura da experiência” cotidiana e articula “micro-poderes” ou poderes periféricos e moleculares. Nesse ponto, dialogo com Foucault (2007a) para pensar que esse “poder” não é algo concreto, palpável ou visível. Não se trata de uma propriedade, passível de ser possuída ou não: o poder não existe, assim como comumente se acredita. O que existe, na verdade, como bem lembra o autor, são práticas ou relações de poder (instituídas em nível micro, macro ou até mesmo sob a lógica das “concentrações”) intimamente dependentes da produção de saberes. Nesses termos, não é possível pensar que os poderes estejam localizados em pontos específicos da estrutura social, pois, na verdade, eles constituem a própria rede ou trama discursiva que a todos toca. Eis, portanto, que o poder é uma relação, ele se “exerce”, se “efetua”, funciona e como tal, assume uma “eficácia produtiva”, que permite gerir a vida dos homens, controlando-os em suas ações, aproveitando ao máximo suas potencialidades e aperfeiçoando suas capacidades.

Nesses termos, é possível pensar que a mídia, em função dos processos de descentramento e disseminação apontados por Martín-Barbero (2006), se torna esse lugar de  alastramento/capilarização de discursos e, portanto, de saberes e poderes. Dialogo nesse ponto com García-Canclini (1998) para pensar no processo de reorganização cultural do poder, o qual remete à passagem de uma “concepção vertical e bipolar” desse para uma outra “descentralizada, multiderminada, das relações sócio-políticas”. Compartilho com o autor a idéia de que, nesse processo, há muitas resistências a esse deslocamento por parte de algumas instituições, sobretudo, no que se refere à circulação de saberes é possível pensar na escola. Uma multiplicidade de transformações sociais, econômicas e culturais nos impedem, hoje, de continuar pensando em instituições onipotentes no que se refere à socialização das novas gerações. O próprio incremento dos processos de hibridação somado à multiplicidade de iniciativas sociais e a pluralidade de referencias tornam evidentes que “captamos muito pouco do poder se só registramos os confrontos e as ações verticais” (García-Canclini, 1998, p.346). Isso porque, seguindo a perspetiva do autor, o poder não funcionaria se fosse exercido de maneira hierárquica, linear e unidirecional. É no entrelaçamento/cruzamento das relações sociais que esse é produzido. Não há como definirmos fronteiras ou limites entre os poderes: Como discernir onde acaba o poder da escola e começa o da mídia? Ou, onde acaba o poder da mídia e começa o da instituição de acolhimento? A eficácia do poder, como bem lembra García-Canclini, está na “obliqüidade” que se estabelece na trama. Eficácia essa que jamais observaria na desinstitucionalização, caso eu tomasse os atores e instituições que participam desse processo de maneira isolada e estanque. Da mesma forma, se eu pensasse as relações que cada instituição ou ator estabelece com a mídia sem interrelacioná-las e percebê-las como fragmentos/pontos, elos de uma trama muito mais complexa. É de fato relevante perceber a “astúcia com que os fios se mesclam, com que se passam ordens secretas e são respondidas afirmativamente” (García-Canclini, 1998, p.347).

Isso me faz pensar tanto na forma quase autônoma que a mídia atua em determinados momentos (quando instaura e prescreve padrões de consumo e morais, que configuram um ethos midiatizado), como na maneira pela qual as demais instituições sociais (instituição de acolhimento e família) fazem uso desse poder, que é produzido na relação dos adolescentes com os produtos midiáticos. Também me interessa refletir sobre a possibilidade do “dispositivo disciplinar” adotado por essas instituições mediar (em termos espaciais e temporais) a apropriação desses saberes propagados pela mídia, encenando um verdadeiro embate/luta/enfrentamento entre poderes que se exercem obliquamente, como observa García-Canclini (1998). E, dessa forma, não há como dissociar poder e socialização, já que o primeiro, como lembra Foucault (2007a; 2007b), atua na fabricação de sujeitos “adequados” ao funcionamento e manutenção da sociedade. Isso porque, o poder tem um “lado transformador”, pois funciona enquanto “rede de dispositivos” ou “mecanismos”, que são dotados de uma “riqueza estratégica”, de uma “eficácia produtiva” e, portanto, de uma “positividade”. Logo, me parece interessante, em termos de socialização midiatizada, o diálogo com Foucault para pensar na disseminação de um poder disciplinar, já que esse não seria pensado em termos destrutivos, mas sim enquanto fabricação dos próprios indivíduos. Isso significa que o poder não se aplica, ele, na invisibilidade que lhe é característica, passa pelos indivíduos. Na impossibilidade de o “agarrar” em sua concretude ou de monopolizá-lo conformando hierarquias, os indivíduos estão tão somente em “posição de exercer este poder e de sofrer sua ação” (Foucault, 2007a, p.183). O poder lhes dota de capacidades para organizar e pensar estrategicamente suas práticas, em função de espaços e tempos específicos.

A obliqüidade do poder disciplinar na esfera institucional

Antes mesmo de analisar a desinstitucionalização, é importante pensar essa relação entre a mídia e os adolescentes a partir de três perspectivas que, nesse momento, estão sendo balizadas pelas observações registradas durante pesquisa de campo empreendida em 2005/2006.

Essa relação se configura a partir da mediação de um “poder disciplinar” presente no tecido institucional;

 

A instituição pode fazer uso do “poder disciplinar” tecido na esfera midiática para socializar esses adolescentes;

  1. O “poder disciplinar” conformado pelo embate/conflito entre instituição de acolhimento e mídia pode organizar o cotidiano dos adolescentes em termos de espacialidade e temporalidade;
  1. No âmbito das instituições de acolhimento, o “poder disciplinar” é percebido em sua potencialidade ou em sua dimensão mais objetivada possível. Contrariamente ao que se possa pensar, isso não se verifica tão somente pela tendência ao “fechamento” dessas instituições, nos termos de Goffmann (1996), mas sim pela organização (espacial e temporal) desses lugares. A disciplina dá conta de um controle específico do tempo e do espaço, objetivando produzir o “máximo de rapidez e de eficácia”. Isso significa que interessa não os resultados das ações, mas sim o seu desenvolvimento, o qual é submetido a uma vigilância permanente dos sujeitos. Vigilância essa ilimitada, já que penetra nos lugares mais íntimos e recobre toda a extensão do espaço. Os indivíduos são conscientes dessa vigilância, são vistos e observados continuamente, sem que no entanto, possam ver em sua totalidade aqueles que o observam.

Assim, como no âmbito dos manicômios e das prisões, objeto de interesse das pesquisas de Foucault (2006 b), o princípio do “quadriculamento” do espaço também pode ser observado nas instituições de acolhimento. O “quadriculamento” remete a uma divisão minuciosamente e pretensamente democrática do espaço, em tantas parcelas ou subespaços conforme o número de corpos que há por repartir. O espaço deve ser organizado de maneira a melhor atender as estratégias de vigilância e controle das quais a instituição faz uso. O “quadriculamento” permite controlar os rituais institucionais (inclusive de assistência televisiva), as entradas e saídas da instituição, a execução das tarefas, os discursos dos adolescentes,  evitar evasão, etc. A estruturação do espaço onde fica localizado o televisor, por exemplo, permite à instituição controlar o “cardápio” de programas assistido pelos adolescentes, o horário de assistência e a interferência desse na execução de tarefas pré-estabelecidas pela instituição.

O espaço da assistência televisiva, em geral, é de circulação intensa (de adolescentes, técnicos e educadores) e fica localizado no que eu chamaria de “ponto central” da arquitetura institucional. Esse espaço tanto pode ser uma sala ou refeitório, mas o interessante é que nele são desempenhadas outras atividades além da assistência. É um espaço para onde confluem várias atividades das mais diferentes ordens: tarefas escolares, domésticas, bate-papo, brincadeiras, jogos, brigas, etc. São, portanto, muitas vozes, uma verdadeira polifonia que constitui o espaço reservado à relação entre os adolescentes e a televisão. Nessa multiplicidade discursiva é que determinados referenciais se sobrepõem em relação a outros, conformando uma “trama”, sobre a qual a instituição tem autoridade para “instaurar as comunicações úteis” e “interromper as outras”, vigiando a cada momento “o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos” (FOUCAULT, 2007b, p. 123). Esse lugar, na minha percepção, é estrategicamente aglutinador, já que anula “o desaparecimento descontrolado dos indivíduos” e, possivelmente, serve como dispositivo de controle de uma “coagulação inutilizável e perigosa” que está sempre latente nos momentos de ócio.

Associado à organização do espaço, é possível observar o controle do tempo que obriga ocupações determinadas, bem como regulamenta os “ciclos de repetição”. Há horário para desempenhar as tarefas (escolares e institucionais) e, sobretudo, para assistir televisão. Claro está, que o tempo de assistência televisiva é limitado em função das demandas institucionais, ou seja, o “lazer” ocupa os fragmentos das horas não aplicadas em trabalho. Nessa negociação temporal reside a máxima da “não-ociosidade”, que depõe contra muitas possibilidades criativas de ocupação do tempo dos adolescentes. Tenho pistas que tanto as instituições de acolhimento como a família desses adolescentes entendem que o tempo dispensado à assistência televisiva é exatamente aquele que não conseguiram otimizar de outra forma e que, por mais inútil que lhes possa parecer, serve como recurso para manter os adolescentes longe da rua. Orientados, na maioria das vezes, por uma “utilização teoricamente sempre crescente do tempo” que objetiva extrair desse “sempre mais instantes disponíveis”, paradoxalmente as instituições não sabem o que fazer com esse tempo dedicado à televisão, ainda que consigam perceber a importância desse no cotidiano dos adolescentes. E isso fica claro quando constato que a televisão é objeto de negociação, de castigo e de compensação. Em troca da execução das tarefas, os adolescentes têm o acesso à televisão, em resposta ao não cumprimento dessas e ao mau comportamento, desliga-se o televisor por um tempo que é determinado pela gravidade da infração. Em perspectiva semelhante, às boas notas na escola e ao cumprimento exemplar de tarefas domésticas, verifica-se uma ampliação no tempo de assistência televisiva. Isso significa, que a televisão é o objeto central dessas “micropenalidades do tempo”, que funcionam como castigo (essencialmente corretivo), sanção, punição de “desvios”, entendidos como a “inobservância e inadequação à regra”, o “não-conforme” desde o discurso até a sexualidade.

[...] funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestão não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (Foucault, 2007b, p. 149).

Mas é interessante pensar também que se há um “regulamento dos ciclos de produção”, a televisão mais uma vez funciona como eixo estruturador. Isso porque, especialmente à noite (período de maior assistência televisiva), ainda que a instituição procure determinar os horários dos rituais cotidianos (refeições, por exemplo), a TV, em função dos horários da sua grade de programação, acaba determinando o tempo de duração desses outros rituais. E nesse ponto, a matriz cultural televisiva encontra sintonia com o tempo da cotidianidade institucional. Ao “tempo repetitivo, que começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidades contáveis, mas sim de fragmentos” muito presente nas instituições de acolhimento, sobretudo em função da baixa circulação desses adolescentes por outros espaços de socialização, a televisão responde com as gramáticas próprias de seus gêneros (Martín-Barbero, 2003b, p. 308), ou seja, com uma forma muita específica e lúdica de socializar. À dificuldade que as instituições encontram em ajustar “cronologias diferentes”, a televisão “responde” com estratégias que se alimentam da própria “textura da experiência”, do senso comum, das competências e ritmos da cultura juvenil. A televisão possui uma lógica própria que lhe permite trabalhar com esses “destempos”: faz dos gêneros uma estratégia de comunicabilidade, que torna a linguagem televisiva familiar aos telespectadores a ponto de estabelecer uma rotina (contrato) de assistência diária.

Em termos de desinstitucionalização, seria interessante pensar em que medida a mídia permanecerá acionando e presentificando esse “poder disciplinar formador” experimentado pelos adolescentes nas instituições de acolhimento, como também no grau de complexificação que essa trama de “micropoderes” assume quando esses jovens passam a conviver com uma outra disciplina própria do lar (familiar ou não). Se até esse momento, o “poder disciplinar” que circulava no ambiente do lar permaneceu latente na memória dos adolescentes, na desinstitucionalização, a situação se inverte: os referenciais sociais internalizados no âmbito da instituição passam a coexistir com aqueles ditados pela família ou cuidadores. Penso na possibilidade da televisão atuar enquanto elo ou interface entre essas esferas (instituição de acolhimento/lar), enquanto lugar de cruzamento entre saberes múltiplos (complementares ou divergentes).

Não se trata mais de conceber, portanto, a relação entre a mídia e os sujeitos a partir de uma visão polarizada, na qual se tem, de um lado, uma instituição onipotente detentora de poder e, de outro, indivíduos que estariam simplesmente submetidos a uma dita “manipulação”. Nesse ponto é importante novamente dialogar com Foucault (2007a) para pensar o poder como uma força circular que só funciona em cadeia, ou seja, que se exerce em rede. No caso da desinstitucionalização, trata-se de uma cadeia complexa de poderes associada a uma “produção, uma circulação e um funcionamento do discurso” (FOUCAULT, 2007, p. 151). Isso significa, então, que os sujeitos envolvidos nessa trama tanto se apropriam e fazem uso do discurso midiático com intuito de configurar o processo desinstitucionalização, bem como são tensionados pelos referenciais (de socializações anteriores) que esses discursos acionam. Eis que o poder precisa ser compreendido em “sua forma capilar de existir”, no ponto exato que esse, como alerta Foucault (2007a, p. 131) , encontra o “nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana”.

O hibridismo dos “sistemas de pertencimento hierarquizados”

Pensar a desinstitucionalização enquanto trama/rede discursiva capilarizada por “micropoderes” significa também compreender como os sistemas de pertencimento hierarquizados (desigualdade e exclusão), analisados por Santos (2005), se fazem presentes nesse novo processo de socialização que os adolescentes passam a participar. A desigualdade, enquanto fenômeno sócio-econômico, implica um sistema hierárquico de integração social, na medida em que o pertencimento se dá pela integração subordinada. Já no que se refere à exclusão, que se configura como fenômeno cultural e social (fenômeno de civilização), o pertencimento se dá exatamente pela exclusão ou não participação do sistema social. Na prática, pondera Santos (2005), os grupos sociais se introduzem simultaneamente nos dois sistemas, conformando combinações diversificadas e complexas.

Foi justamente uma mescla de fatores próprios da desigualdade e da exclusão que, em um determinado momento, configurou a necessidade de institucionalização dos adolescentes. Poderia dizer, inclusive, nos termos de Santos (2005), que a institucionalização representa a concretude de um sistema híbrido de hierarquização. Nesse ponto, a minha reflexão é orientada pelo conceito de hibridismo de García-Canclini (2000), o qual dá conta de processos socioculturais, nos quais estruturas e práticas discretas que existiam em forma separada, acabam por se combinar para gerar novas estruturas, objetos e práticas. O processo de hibridação entre exclusão e desigualdade ainda que não tenha sido planejado, não é produto da criatividade individual e coletiva, mas sim é configurado por parte de setores hegemônicos que desejam se apropriar dos benefícios da modernidade, como bem alerta o autor. Da combinação (que não chega a ser fusão completa) dos sistemas de pertencimento hierarquizados de fato se tem uma nova estrutura que permanece engendrando assimetrias e subordinação. Isso porque, esses adolescentes convivem tanto com as conseqüências de um sistema de desigualdade, já que, na grande maioria, advêm de classes populares e, portanto, têm acesso, na maioria dos casos, a condições sociais, econômica e culturais precárias e de bases frágeis, como exclusão imposta pelas próprias medidas de reinserção social a que são submetidos. A exclusão, conforme Santos (2005), dá conta de um processo histórico, através do qual uma determinada cultura, enquanto instituidora de uma verdade, estabelece limites em relação a padrões sociais aceitáveis, para além do qual só pode existir transgressão e desvio.

Nesses termos, o mesmo sistema de desigualdade que encontra justificativas para gerar políticas de reinserção social ou reeducação, acaba por se tornar excludente na medida que separa, isola e segrega orientado por uma lógica “artificial” de socialização. Ou seja, o indivíduo precisa ser “retirado” da sociedade para cumprir um programa de preparação para o retorno da vida em comunidade, mantendo-se em um regime de semi ou ausência de liberdade e, portanto, de contato com essa. A partir dessas reflexões, me permito observar a institucionalização como um ciclo que mescla desigualdade e exclusão e tem a delinqüência como seu exemplo mais extremado. Isso significa, como bem pontua Santos (2005), que na própria base da exclusão é possível encontrar uma espécie de pertencimento que se afirma paradoxalmente pelo não pertencimento dos indivíduos no sistema social. Ou seja, orientado por uma política não excludente, o Estado conjuntamente com as instituições responsáveis pela operacionalização ou implementação de medidas de proteção ou socioeducativas aos adolescentes em “perigo” ou àqueles que são considerados “perigosos”, acaba retirando esses sujeitos do convívio social, acentuando os fatores de exclusão. “Las prácticas sociales, las ideologías y las actitudes combinan la desigualdad y la exclusión, la pertenencia subordinada, el rechazo y la prohibición. Un sistema de desigualdad puede estar, bajo ciertas circunstancias, acoplado a un sistema de exclusión” (Santos, 2005, p. 197).

Pesa, muitas vezes, no processo de construção desse sistema hierárquico híbrido, uma lógica epistemológica que orientou e talvez ainda, em alguma medida, permaneça orientando as ciências humanas. Essas criam disciplinas que se ocupam da discussão e implementação de um dispositivo de normalização que simultaneamente é “qualificador” e “desqualificador”. Isso porque, embasadas em determinados paradigmas “essencialistas”, essas disciplinas tanto desqualificam aqueles que consideram desviantes do sistema social, consolidando a exclusão, como sustentam fatores que justificam essa mesma exclusão, como por exemplo, a questão da violência ou da periculosidade. Pretendo dizer com isso, que o preconceito é, muitas vezes, alimentado pelos próprios pesquisadores, sobretudo, quando pretendem compreender o outro , especialmente os sistemas de valoração desse, a partir de suas próprias categorias, as quais já estão previamente “engessadas” pelo preconceito.

Isso me faz pensar também na palavra “desestrutura” usada mais comumente como operador semântico com a pretensão de dar conta de uma ausência de recursos econômicos e bases morais por parte das famílias de classes populares. Na verdade, embora possa parecer óbvio, a palavra “desestrutura” só faz sentido diante da existência de uma “estrutura” familiar. E nesse ponto, é pertinente considerar de que estrutura familiar podemos falar hoje? Em função do processo de “desinstitucionalização” que marca a sociedade moderna de forma generalizada, independente de uma questão de classe ou condição social, estamos diante de novas configurações familiar, para além do modelo mononuclear. Nesses termos, a noção contemporânea de família rompe com um modelo presente no nosso imaginário de uma “família conjugal” (“co-residência” de um casal heterossexual e seus filhos) em função de uma outra noção, a de “família extensa”, para além dos laços de consangüinidade, etc. Então, essa “estrutura” que insistimos em tomar como referência dá conta de padrões pré-estabelecidos por uma sociedade ocidental que, embora experimente essas novas constituições familiares, julga e hierarquiza, conforme observa Fonseca (2006), antes de compreender o comportamento do outro. Esse esforço de “captar a lógica do outro”, lembra a autora, requer um exercício permanente de “sair do nosso próprio sistema simbólico, que nos acompanha como o ar que respiramos, para tentar penetrar no sistema do 'outro'” . Isso significa que para compreender os “comportamentos que destoam do nosso ideal” é preciso olhar “para os nossos próprios conceitos e, conseqüentemente, “desmontar a moralidade das nossas categorias de percepção”(Fonseca, 2006, p. 19-20). Do contrário, a busca pela compreensão dos motivos que levam a institucionalização de crianças e adolescentes e, nesse ponto, permaneço dialogando com Fonseca, é “engessada” por pré-concepções que acabam por comprometer o olhar que fazemos sobre a trajetória desses sujeitos, a ponto de nos orientarmos por lógicas que objetivam tão somente procurar classificar/rotular as famílias, vizinhanças e redes sociais destas crianças e adolescentes como “patológicas”, “desorganizadas”, e sobretudo de “influência nociva” (Fonseca, 2006).

Ainda em se tratando de Modernidade, Santos (2005, p. 199-200) observa que ao mesmo tempo que a regulação social capitalista está construída sobre as bases da desigualdade e da exclusão, essa também procura estabelecer “mecanismos que permitem controlar ou manter dentro de certos limites esses processos”, os quais encontram uma possível redenção em um dito “universalismo” que prefiro aqui caracterizar como dual e extremista. Isso porque, ao funcionar sob uma lógica estanque ou bipolar se expressa, em termos práticos e operacionais, sob duas formas de existência: antidiferencialista e diferencialista. Esse universalismo que é concebido com a pretensão de amenizar as conseqüências de um sistema complexo de desigualdade e exclusão acaba por não encontrar um meio termo entre a negação e a absolutização das diferenças. Se por um lado o sistema antidiferencialista, que opera segunda a norma da homogeneização e inferioriza pelo excesso de semelhança, por outro, o antidiferencialista, orientado pelas normas do relativismo, inferioriza pelo excesso de diferença. Dessa forma, é exatamente essa mesma noção de “universalismo antidiferencialista” que justifica seus meios por conta de um “princípio de cidadania e de direitos humanos” que me parece estar nas bases das políticas de reinserção social. Esse “universalismo diferencialista” que busca combater as desigualdades por meio de políticas sociais de um Estado-providência é que, ao empreender um processo especialização de políticas ao atendimento da criança e do adolescente, acaba por substituir a noção ambígua, “coisificadora” e descriminadora de “menor” instituída pelo Código de Menores de 1927 por uma concepção de “infância universal”.

A idéia universal de infância, ao mesmo tempo que representa um avanço em relação à categoria “menor”, acaba por gerar um “refinamento” da distinção entre assistência e repressão, a partir do momento que separa (de forma estanque) aquelas crianças e adolescentes sujeitos às medidas de proteção especial, daqueles que estão sujeitos às medidas socioeducativas. Conforme Schuch (2005), essa distinção não representa apenas uma diferenciação da terminologia ou da linguagem, mas sim, uma separação entre “vítimas e infratores”, “inocentes e culpados”, crianças e adolescentes “em perigo” e “perigosos”. Diante desse cenário, a pesquisadora observa, portanto, que essa distinção de políticas além de aumentar o estigma posto entre jovens “considerados infratores”, acaba por “culpabilizar as famílias que recorrem ao abrigamento dos seus filhos”. Isso me faz pensar na carga de significados que acompanha essas categorias, ou seja, como essas terminologias são insuficientes para representar a realidade socioeconômica desses jovens, especialmente, quando se percebe que a fronteira entre carência econômica e negligência podem se tornar muito tênues.

Santos (2005) observa que esse modelo de regulação social-democrata, produtor de desigualdades e exclusão simultaneamente, além de estar em crise, esteve presente apenas na Europa e no Atlântico Norte. Contudo, ainda que o autor, seguindo uma perspectiva pós-moderna, situe esse sistema expresso de maneira localizada (apenas em um pequeno número de países desenvolvidos), em uma modernidade que lhe parece, de certa forma, distante, não invalida a relação que aqui proponho entre universalismo e as políticas assistencialistas presentes no Brasil, país que o autor identifica como de “desenvolvimento intermediário”. Até mesmo porque, o próprio processo de “desnacionalização” que “altera as condições de eficácia de intervenção do Estado”, fazendo com que esse, sem “grande iniciativa” seja responsável apenas pela execução de políticas transnacionais, está presente em todo o movimento de “configuração” do paradigma da “infância universal”, que embasa o processo de implementação do Estado da Criança e do Adolescente (ECA) a partir da década de 1990. E nesse ponto, o próprio autor observa que os grupos sociais discriminados (por processos de exclusão) foram, nesse período, objeto de muitas políticas assistencialistas (vinculadas ao universalismo diferencialista), as quais eram substanciadas e traduzidas em leis.

Nesse sentido, os programas de reinserção social (programas de reeducação ou retorno à comunidade) passam a ser reflexos de uma “gestão controlada da exclusão”, regida por uma lógica, um tanto controversa, de substituição da segregação pela reintegração. E aqui é importante enfatizar: “En ninguna de estas políticas se trató de eliminar la exclusión, tan sólo se procedió a su gestión controlada” (Santos, 2005, p.206). Isso porque a gestão de exclusão voltada às políticas de reeducação, de reinserção social ou de reintegração na comunidade estiveram e permanecem orientadas, ao que me parece, por um “juízo de periculosidade” de parâmetros universais. E o extremo do combate a essa ameaça de perigo latente aos padrões sociais pré-estabelecidos encontra-se retratado no sistema de funcionamento das “instituições totais”, as quais, em diálogo com Goffman, me permito definir enquanto instituições que têm tendência ao fechamento, ou seja, o “caráter total é simbolizado pela barreira social com o mundo externo” (Goffman, 1996, p. 16).

Não pretendo com essas reflexões defender uma posição de fracasso total da institucionalização, sobretudo das propostas de socialização que orientam o funcionamento desse sistema. Até mesmo porque, o problema que se coloca tem suas origens na própria concepção que temos de “instituição” no Brasil. Nesse ponto, compartilho do pensamento de Santos (2005) de que, no Brasil, nunca assistimos a um “pacto social democrático”. Talvez por isso, nos cause tamanho estranhamento pensar em “institucionalização”, quando há muitos indicadores (transformações sociais e culturais) que nos encaminham para um processo exatamente contrário de “desinstitucionalização”, aqui pensado como exatamente esse “desencaixe”, nos termos de Giddens (1991), das instituições sociais. Ou seja, faço referência, aqui novamente, a um movimento já mencionado de alguma forma, no início desse texto, que dá conta da perda do monopólio ou privilégio de determinadas “instituições sociais” na socialização de gerações mais jovens. E nesse processo, inegavelmente os meios de comunicação, em especial a televisão, têm um papel crucial, por conta de serem disseminadores e legitimadores do multiculturalismo, como forma estratégica de resistência a uma política de homogeneidade cultural (Hall, 2003).

No entanto, Santos (2005) observa que por conta da globalização, tanto o sistema de desigualdade quanto o de exclusão passam a atuar sob a lógica de espaços-tempos distintos (articulação entre nacional e transnacional), o que implica numa metamorfose entre esses dois modelos. Isso significa que o sistema de desigualdade se converte em exclusão, assim como o sistema de exclusão transforma-se em desigualdade. Essa reconversão ou metamorfose me ajuda a pensar a “desinstitucionalização” dos adolescentes que permanecem até a maioridade em instituições de acolhimento. A proposta de Santos me ajuda a pensar como a institucionalização (que gera um sistema de exclusão em resposta a um sistema de desigualdade) em um determinado momento inverte sua lógica, no momento em que o adolescente se desliga “teoricamente” do programa do socialização institucional (abrigo). Numa tentativa de rompimento com um sistema de exclusão (que afastou temporariamente os jovens de um efetivo contato social), os adolescentes, na desinstitucionalização, reencontram os mesmos fatores (gerados por um sistema de desigualdade) que contribuíram para o internamento. E, muito provavelmente, esse sistema de desigualdade virá, nesse momento, acompanhado dos estigmas (produtos de um sistema de exclusão), ou seja, de marcas sociais características do programa de socialização do qual participaram. A dificuldade de inserção (sobretudo no mundo do trabalho), nessas condições, configura o que Santos denomina de a “nova cara da exclusão”.

La inutilidad social de un gran número de trabajadores es sin duda la nueva cara de la exclusión, uma prohibición que no se basa em uma división cultural ou civilizacional a la manera de Foucault, la cual se mide por la distancia y por la esencialización del otro, sino em uma prohibición que se apoya em uma división socioeconómica casi natural, evaluada por la proximidad y por la desencialización del otro, em la medida en que puede sucederle a cualquiera (Santos, 2005, p. 212).

Nesse cenário propício ao desenvolvimento de formas típicas do sistema de exclusão, tais como o “darwinismo social” e o “eugenismo tecnológico”, os adolescentes se vêem convocados a serem “responsables de su destino, de su supervivencia y de su seguridad, a ser gestores individuales de sus trayectorias sociales sin dependencias ni proyectos predeterminados” (Santos, 2005, p. 213). Isso significa que exatamente no momento em que tudo parece “estar fora de seu controle”, esse jovem é chamado a ser “el amo y señor de su destino”. Eis que se configura uma outra forma de reflexividade, na qual os meios de comunicação assumem uma função articuladora no que se refere ao contato desses sujeitos com uma multiplicidade de referenciais sociais. Dentre as muitas leituras que são feitas desse conceito, prefiro adotar aquela que remete à maneira pela qual os sujeitos forjam experiências e conhecimentos para comporem sua identidade. Faço a opção por esse enfoque exatamente porque penso que este está mais intimamente relacionado ao papel dos meios de comunicação. Em função da Modernidade, a reflexividade passa a ser em grande parte mediada, ou seja, alimentada por materiais simbólicos que provêm da mídia. Inegável o papel dos meios de comunicação no processo de configuração/legitimação das múltiplas identidades que esses adolescentes assumem ao longo de sua trajetória. No entanto, é importante pensar de que maneira a mídia pode participar da complexidade da política identitária proposta por Santos.

Televisão: quais possibilidades para se pensar em uma política identitária?

Dialogo com Santos (2005), para pensar que os grupos sociais e os indivíduos são capazes de acumular , ao longo do tempo, diferentes e múltiplas identidades (complementares ou contraditórias), essas pensadas enquanto pausa transitória em um processo de identificação. Da mesma forma, é bem provável que, em determinadas circunstâncias, uma dessas identidades venha a assumir uma certa primazia sobre as demais. Importante lembrar nesse ponto, com base nas contribuições de Cortina (2005), que as identidades não são dadas aos sujeitos, mas sim são negociadas a partir da interação que esses estabelecem com o “outro”, sobretudo aqueles que foram denominados por Mead de “outros significativos”(aqueles que realmente importam ou contam para a pessoa e a ajudam a se autodefinir). Eis que portanto, conforme Cortina (2005, p.156), a identidade é “forjada a partir de um horizonte triplo: moral, pessoal e de reconhecimento por parte dos outros significativos”.

Nessa perspetiva, com base em Santos (2005), é legítimo que uma política identitária, antes de mais nada orientada por um novo paradigma epistemológico, deveria dar conta de um “imperativo categórico” multicultural, cuja perspectiva, a primeira vista, assume uma “forte dimensão utópica”. Tal imperativo, pensado a partir de uma perspectiva pós-moderna, o autor sintetiza na seguinte passagem: “tenemos derecho a ser iguales cada vez que las diferencia nos inferioriza; tenemos derecho a ser diferentes cuando la igualdad nos descaracteriza” (Santos, 2005, p. 223).

A política de identidade proposta por Santos é explicada por meio de três processos básicos (“diferenciação”, “auto-referência” e “reconhecimento”) que são difíceis de se concretizar por conta das condições postas pelos sistemas de desigualdade e exclusão. A “diferenciação”, que representa o inverso da lógica orientadora da exclusão, representa a separação do eu em relação ao outro, por meio de atos de resistência. O segundo processo, a “auto-referência”, é o momento de exame da criação identitária, quando o sujeito se vê exatamente na situação de trabalhar e negociar uma multiplicidade de referenciais. E, por último, estaria o “reconhecimento”, crucial, se pensarmos que o eu necessita do reconhecimento do outro para se constituir plenamente. Seguindo essa linha de raciocínio, se a desinstitucionalização implica em um outro momento de socialização na vida dos adolescentes, cujo produto são identidades múltiplas, em que medida a mídia estaria atuando nesse processo, já que essa se constitui enquanto interface entre a instituição e o lar? Ou ainda, até que ponto a mídia estaria disponibilizando e acionando memórias de referenciais sociais para que esses adolescentes construam esse momento da desinstitucionalização? De que forma a mídia pode participar dessa política identitária, em meio a complexa e hibrida relação entre desigualdade e exclusão que ainda mediam a inserção social (socialização)? Talvez não seja tão “utópico” se pensarmos que é exatamente pelos processos de identificação e diferenciação que os sujeitos aprendem com e pela mídia.

Nesse ponto, seria importante dialogar com a apropriação que Fischer (2002) faz do conceito de “dispositivo de sexualidade” de Foucault. A autora, em algumas de suas pesquisas, se ocupa da explicação e operacionalização de um “dispositivo pedagógico da mídia”, que dá conta de um modo de atuação da mídia (particularmente a televisão) no sentido de “participar efetivamente da constituição de sujeitos e subjetividades”. Isso porque, conforme as observações e análises da pesquisadora, a mídia tem potencial para produzir “saberes que de alguma forma se dirigem à 'educação' das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e de estar na cultura em que vivem” (Fischer, 2002, p. 153). A autora, ao reiterar a importância das aprendizagens televisivas no que se refere aos modos de existência, de comportamento e de constituição identitária para os diferentes grupos sociais, observa os espaços midiáticos enquanto lugares de formação, ao lado da escola, da família, da igreja, etc.

A essência, se assim se pode dizer, da noção de dispositivo pedagógico midiático proposta por Fischer está na relação entre sujeito e poder. Isso porque, o sujeito convive ao longo da sua trajetória com duas formas de submissão: está submetido de alguma forma ao outro (por meio de relações de controle ou dependência) e também a si mesmo (mediante a prática do conhecimento de si). A partir desses dois modos de compreender o sujeito em sua complexidade, a autora observa que esse tanto está submetido a relações de controle e dependência, como, em vários momentos, nos mais diferentes espaços institucionais, é “chamado” a “olhar para si mesmo, a conhecer-se, a construir-se para si verdades sobre si mesmo” (Fischer, 2002, p. 154). Nesses termos, esse “voltar-se para si mesmo” acabaria por se constituir enquanto “linha de fuga” frente às possíveis relações de controle e dependência, que não seriam jamais absolutas. Interessante que uma vez aprendidos ou internalizados, em diferentes dinâmicas de saber e poder, esses “modos de existência” jamais serão homogêneos e definitivos “pelo contrário, sempre há neles interstícios, fendas, possibilidades éticas e estéticas não pensadas pelos saberes e poderes em jogo” (Fischer, 2002, p. 154). Na tentativa de se afirmar como “lugar especial de educar”, a televisão tanto incita uma exposição do discurso “sobre si”, como também assume “o governo de si pelo governo dos outros”. Não desconhecendo a articulação entre esses dois movimentos, interessa aqui me deter na reflexão sobre o segundo. Isso porque, me parece que em se tratando da desinstitucionalização, especialmente como os atores que participam direta (adolescentes) ou indiretamente (técnicos e educadores que trabalham nas instituições de acolhimento e familiares) desse processo fazem uso da socialização midiatizada televisiva.

Isso significa que estou pensando na possibilidade desses sujeitos responsáveis pela formação desses adolescentes e, conseqüentemente pelo processo de desinstitucionalização, estarem fazendo uso desse “dispositivo pedagógico” da mídia (governo de si pelo governo dos outros), em suas práticas de socialização. Interessante pensar em que medida as experiências, reflexões e sentimentos do outro podem desencadear um exercício de auto-avaliação, um “pensar-se sobre si mesmo”. Penso na possibilidade desse e de outros dispositivos midiáticos (a serem descobertos e analisados em profundidade) que ao serem reconhecidos e operacionalizados, talvez enquanto prática pedagógica, possam fazer da mídia esse espaço de “conhecimento e reconhecimento das diferenças”, cujo ponto de equilíbrio é a “solidariedade”.


Notas:

    Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos (Brasil-Rio Grande do Sul-São Leopoldo). Professora da Associação Educacional Luterana Bom-Jesus/IELUSC (Brasil-Santa Catarina-Joinville). Membro do Núcleo de Estudos em Comunicação (Necom) e do grupo de pesquisa Processocom e editora da Revista Rastros.

    Durante a pesquisa exploratória (2005), realizei 25 visitas às instituições de acolhimento, contemplando um corpus conformado por 23 adolescentes. Na pesquisa sistemática (2006), foram empreendidas 26 visitas, para dar conta de um corpus constituído por 17 adolescentes.

    O modelo casa-lar pode ser compreendido enquanto uma família social (com uma mãe e um pai social) que, além dos seus filhos biológicos, pode acolher até oito filhos sociais.

    Acolhe apenas meninas (gestantes e não gestantes). Há casos em que as meninas permanecem na instituição com o seu filho por um período determinado.

    Instituição que acolhe apenas meninos. Alguns desses em situação de cumprimento de medida socioeducativa.

    A palavra formal está sendo usada aqui somente para situar ao longo do texto as instituições não midiáticas. Portanto, ao usar esse termos não pretendo julgar o caráter dessas instituições, nem tampouco privilegiar ou centralizar o papel da mídia.


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Cruz, Fernanda Guimarães
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos / Professora da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/IELUSC Joinville-Santa Catarina, Brasil.

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