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Por José Afonso Jr.
Número 28
Depois de sessenta dias do
assassinato do repórter Tim Lopes, uma série de lacunas
permanece excluída do debate/ polêmica. Algumas provocações
serão feitas aqui, como forma de refletir esses vácuos
existentes sobre o tema e mapear alguns equívocos da cobertura
da mídia sobre o assunto.
A despeito da morte absolutamente
trágica de um repórter em plena atividade, amplificada
ainda mais pelas circunstâncias de hiper-violência presentes
no caso, o jornalismo que ele praticava -e que ainda tem fervorosos
discípulos- já deveria ter morrido há muito
tempo.
A pretensa elevação
aos céus da memória da Tim Lopes, associada e derivada
da sua prática jornalística é o primeiro equívoco.
O patético espetáculo de encerramento do jornal Nacional
-no dia em que se confirmou a sua morte- capitaneada por William
Bonner, com homenagem póstuma de mais valia jornalística,
é digno de entrar para o bestiário da imprensa brasileira,
no quesito unilateralidade informativa. A lógica da lavagem
de honra utilizada pelo JN é provavelmente a mesma que orientava
Tim Lopes na sua sede pretensamente investigativa.
Denunciar primeiro e conferir depois,
está em absoluta igualdade e superficialidade para chorar
e santificar primeiro sem verificar o contexto da morte do jornalista.
Espécie de praga que infesta o jornalismo brasileiro, o denuncismo
travestido de investigação encontra forte ecos no
adesionismo de primeira linha presente no espírito corporativo
dos coleguinhas.
O segundo equívoco e que
provavelmente causou a morte de Tim Lopes, é a confusão
generalizada entre denúncia e investigação.
Investigar pressupõe: conferir informações,
mapear situações e concatenações dentro
do sistema investigado, estabelecer elos entre os atores e agentes
envolvidos. Enfim, investigar é compleixificar uma relação
que pode parecer evidente, mas não o é. Por trás
de um baile funk onde haja prática de sexo (a pretensa investigação
de Tim era motivada supostamente por isso), um papelote de cocaína,
uma dolinha de maconha, venda de armas ou centro de prostituição,
ocorrem certamente relações muito mais profundas e
tentaculares do que uma micro-camera de lapela pode alcançar.
Esse desvio de função
operado por Tim Lopes certamente mais cedo ou tarde resultaria em
algo na proporção do que ocorreu, fosse com ele ou
outro repórter. E, em absoluto, está excluído
de se repetir. Usar uma micro-câmera a pretexto de dissecar
um shopping de drogas ao ar livre, gravar adolescentes pobres da
periferia em um baile funk é cair na tentação
mais fácil do jornalista: portar-se como franco atirador
da informação, flagrando o inusitado e trágico
do que a nossa sociedade está dependente e transformando-o
em espetáculo no horário das 20 horas. Um big brother
às avessas. Sem gente bonita, sem gincanas, sem prêmios.
Mas com doses de bizarrices e condições infra-humanas
para sintetizar qualquer catarse.
Tim Lopes agia como um Narciso ao
contrário. Ele usava a nossa miséria como forma de
espelho da nossa corroída sociedade e, ao transformar em
espetáculo, cuspia nessa própria imagem. Reforçava
discursos viciados contra a tríade: negro, pobre e favelado.
No momento de choque e de impasse diante do inexplicável
ou do estapafúrdio, emergia como o profeta que tinha operado
essa epifania das trevas. Para ampliar esse aspecto, vale conferir
a matéria desse mês (agosto de 2002) que saiu na Trip,
com o Discípulo-colega do Tim Lopes, Marcelo Rezende.
Na entrevista Rezende reforça
alguns pontos de vista que indicam para a incompletude e o nevoeiro
que paira sobre o caso. Ele afirma que Tim era do morro, usava e
conhecia as gírias do lugar e "tinha a manha".
Ora, algumas perguntas aqui não querem calar. Vamos a elas.
1 - Se ele tinha esse sovoir-faire
o que levou ele a pagar esse vacilo? Erro na avaliação
da situação? - Não creio. Era jornalista
há 30 anos e provavelmente dominava os códigos endogênicos
da vida do narcotráfico.
2 - Será que ele estava "investigando" o que
realmente foi alardeado?
3 - Quais práticas ele adotou e que preços estava
disposto a pagar em nome da denúncia?
4 - por que, a Rede Globo só caiu verdadeiramente no assunto
depois de um repórter seu estar desaparecido fazia 4 dias?
Vivemos em um mundo de redes, telefonia móvel e, nada mais
ponderável, para uma mega-corporação das
telecomunicações, ter para casos como estes, uma
estrutura mínima montada para garantir a integridade física
do Repórter.
Fico por aqui na sessão de
perguntas. Não adianta mais respondê-las, pois o problema
é mais profundo. Porém, vale ponderar um pouco em
cima dessas hipóteses.
Voltemos para o problema do investigativo
e do jornalismo que não o é.
Um dos problemas centrais é
que essa prática investigativa ou denuncista fica sob completo
controle do repórter e dos seus achismos, indiossincrasias,
"manhas" e, por que não, preconceitos e vícios
de uma profissão que, menos sabe acompanhar e explicar processos
(como o tráfico de drogas, por exemplo) e mais sabe pontuar
fatos-bomba e profecias auto-anunciadas.
Se você prestar atenção,
verá que esse equívoco ético de prática
jornalística, nas nossas sociedades ávidas por violência,
espetáculo, sexo e denuncismo, podem e são facilmente
adotados como modelo de prática jornalística. Atire
primeiro, confira depois. Fique tranqüilo, pois o desmentido
nunca tem a mesma força da denúncia, logo, se alguém
sair ganhando será você: meu inescrupuloso repórter.
Segundo equívoco. Jornalismo
e espetáculo são, ou deveriam ser, a princípio,
esferas distintas. Ao optar em uma estratégia mais denuncista
que investigativa, motivada mais pelos índices de audiência
que pelo desmonte e explicitação de redes de tráfico,
corrupção, etc. Cai se em territórios mais
próximos do entretenimento do que da noticiabilidade. Que
pertinência - a não ser pela tentação
do sensacionalismo - a cobertura de um baile funk da periferia carioca
- pode suscitar? Audiência, sem dúvida.
O próprio Marcelo Rezende,
há alguns anos protagonizou uma série de reportagens
sobre tráfico de armas que inovou no formato: nem era um
documentário no estilo globo-repórter, nem uma matéria
especial, mais longa, daquelas que fecham a edição
de um jornal. Era uma série. Ia ao ar em blocos, dentro do
JN, durante uma semana. Uma telenovela da corrupção,
mercado da violência, fracionada. Inclusive com as mesmas
técnicas do jogo dramático: ganchos, elipses, flash
backs. Aos pedaços, o denuncismo "rende" mais.
Algo mais para o jantar...?
Terceiro equívoco. A pertinência
da denúncia e sua mimetização em notícia.
Uma atitude de apurar informações pesadas e fortes
não se converte necessariamente em investigação.
Tim Lopes parecia ignorar esse aspecto. Ao confundir isso com prática
válida de jornalismo, pode se ter dificuldades em reconhecer
a face do jornalismo em si. Cercar a morte trágica de Tim
Lopes de uma aura de "nobreza" investigativa é
um exercício tosco, justificado apenas pelo drama e tragédia
do dia-a-dia.
A função dessa espécie
de jornalismo na esfera psicossocial, pode ser mais facilmente entendida
se compararmos ela a uma tourada. Onde temos, na consumação
de uma imagem de bravura que recai sobre o toureiro. Lembremos porém,
que tanto na tourada, como no jornalismo denuncista, temos uma série
de pressupostos. No denuncismo temos o clichê social, o preconceito
como um à priori e o flagrante sem compromisso com as causas
que levam a sua verificação. Por outro lado, os pressupostos
da tourada são: surrar e espetar o touro previamente, deixá-lo
fraco, para finalmente, ser finalizado pelo toureador. Em ambos
exemplos o que justifica os pressupostos é o espetáculo
para a platéia e/ ou a tele-audiência.
Na verdade, em ambos os casos, o
que temos é uma farsa. Em ambos os casos temos a falsa idéia
que se trata de um embate entre a brutalidade (o tráfico-crime/
touro) e a astúcia inteligente (o repórter/ toureador).
Vítima de inúmeros procedimentos visando a unilateralidade
do conflito, o touro/ crime, já está derrotado de
antemão. É uma dinâmica sustentada para o espetáculo
e paga com a moeda da trapaça. Mais uma vez, em ambos os
casos, o toureiro com seu sabre e Tim Lopes com sua micro-camera
não são heróis operando cenas de um épico.
São ambos, seres fracos que transformam a covardia em espetáculo
de coragem. É um charlatanismo em rara sofisticação.
Esse é precisamente o quarto
equívoco. A tourada e o jornalismo-denuncista operam em cima
de pressupostos, de teses já prontas à busca de sua
confirmação. Um espetáculo que só se
completa em sentido com a aniquilação do objeto, seja
o touro o a exibição de cenas de narcotráfico.
Mas, o preço a se pagar em
ambos os casos é alto. O jornalista de denúncia, paga
o preço de ser um instrumento de catarse pagã de uma
civilização suja e doente. Conforme o próprio
Marcelo Rezende coloca na
matéria da Revista Trip, não pode ter vida pública,
vive se escondendo, mudando de casa, dormindo em hotéis,
longe de amigos, sem chance de ir ao cinema, supermercado, enfim.
Para terminar, gostaria de lembrar-lhes
que, vez por outra, o touro vence. Foi isso que aconteceu..
José
Afonso Jr.
Professor de jornalismo da
UFPE e doutorando em Comunicação
na FACOM-UFBA, Brasil.. |