Por Giselle Beiguelman
Número 41
A utilização
de dispositivos portáteis de comunicação sem-fio
com possibilidade de conexão à Internet é uma
tendência irreversível. De acordo com a empresa de
pesquisa eTforecasts, em 2005 48% dos acessos à Internet
serão feitos via dispositivos sem fio.
Dados apurados pela revista Veja,
em edição dedicada à tecnologia e consumo,
publicada em 2001, apontavam um crescimento trimestral de 200% no
mercado de Palms no Brasil, que já contava nesse período
com mais de 500 mil usuários.
Pesquisa realizada pela Jupiter
Media Metrix, por outro lado, afirmava que no final de 2001, 35
milhões de pessoas estariam conectadas à Internet
por sistemas sem fio (wireless). Outra empresa de pesquisa, a Allied
Business Intelligence, prevê que até 2006, os usuários
de sistemas de conexão wireless somarão 1 bilhão.
Estima-se, ainda, conforme prognósticos
da Anatel, que até 2005, quando os celulares de terceira
geração estiverem implantados no Brasil, teremos mais
de 57 milhões de usuários do sistema no país.
Esses dados apontam não só
para a incorporação do padrão de vida nômade,
mas, também indicam que o corpo humano se transformou em
um conjunto de extensões ligadas a um mundo cíbrido,
pautado pela interconexão de redes e sistemas on e off line.
Instrumentos especialmente desenvolvidos
para a adequação a situações de trânsito
e deslocamento, os dispositivos de comunicação móvel
são ferramentas de adaptação a um universo
urbano de contínua aceleração e afetam sensivelmente
as formas de percepção, visualização
e comunicação remota.
Trata-se agora de refletir sobre a recepção em ambientes
de constante fluxo, em condições entrópicas,
onde o leitor/interator está sempre envolvido em mais de
uma atividade (dirigindo, olhando um painel eletrônico e falando
ao telefone, por exemplo), interagindo com mais de um dispositivo
e desempenhando tarefas múltiplas e não-correlatas.
Criar para essas condições
implica, por isso, repensar as condições de legibilidade
e as convenções e formatos da comunicação
e transmissão. Mas implica também compreender os meandros
políticos, econômicos e ideológicos que interpõem
a essas condições de criação.
Uma exposição realizada
recentemente em São Paulo pode ser um ponto de partida para
essa discussão.
Entre os dias 10 e 12 de setembro,
o Instituto Tomie Ohtake sediou a exposição “Life
Goes Mobile”que reuniu projetos de sete artistas para dispositivos
móveis de conexão e interação1.
Com curadoria de Lucas Bambozzi
e patrocínio da Nokia Trends, a exposição fazia
parte do conjunto de mostras multimídia do festival de música
e arte eletrônica Sónar e colocava algumas questões
fundamentais no que diz respeito à cultura digital e à
criação artística que se vale de meios emergentes
de comunicação.
Essas questões remetem, por
um lado, às relações entre criadores independentes
e demandas corporativas e, por outro a contextos de produção,
circulação e recepção particulares às
experiências cíbridas (aquelas que se realizam no interior
e entre redes on e off-line).
Do ponto de vista institucional,
desenha-se uma situação complexa para o artista que
deseja usar o celular como um novo meio/ferramenta para suas obras,
sem abrir mão de sua liberdade de crítica, especialmente
para aqueles que trabalham com temáticas mais "militantes"
e anticorporação.
Um raciocínio simplista poderia
concluir aí: arte e cultura não podem ser produzidas
com perspectivas críticas nesses moldes. Contudo, é
preciso levar em conta duas nuances essenciais.
Lembrar que o campo estrutural da
ciberpolítica hoje não é questionamento da
marca ou do produto em si, mas os sistemas operacionais e o tipo
de codificação dos programas utilizados: abertos ou
fechados.
A codificação aberta,
passível de ser implantada em celulares GSM, pode resguardar
o exercício crítico nesse contexto, mesmo mantendo
vínculos de patrocínio, pois permite que o conteúdo
gerado seja revisto, reciclado e reutilizado de outra forma, sem
que a criação se torne refém de uma marca.
Ainda nessa esfera política
e institucional da discussão, é necessário
lembrar aqui do fator "real reality", para não
terminar rimando militância com ignorância:
O contexto wireless é muito
diferente do da Internet fixa, pois ele já nasceu corporativo
(ao contrário da Internet, na qual as empresas de informática
se ligaram posteriormente). Ele é inteiramente mediado por
operadoras e fabricantes.
Para agravar, em um país
como o Brasil, em que as universidades estão desaparelhadas
para o incentivo da pesquisa tecnológica, especialmente no
campo da criação artística, a relação
com esse tipo de interlocutor – corporativo – torna-se
decisiva.
O fato de ser decisiva, contudo,
não exime o artista de sua responsabilidade crítica.
Ao contrário, exige dele, talvez mais do que nunca, a consciência
de que qualquer opção tecnológica é
ideológica e que manter sua liberdade de criação
e pensamento, nesse âmbito, passa pelo abandono de posturas
românticas fundadas na base da divisão de trabalho
entre os inspirados e os transpirados. Sem conhecer os fundamentos
da programação, corre-se o risco de virar garoto-propaganda
sem sequer saber do quê....
Esclarecido esse aspecto da discussão,
sem a qual todo e qualquer debate sobre arte e tecnologia se torna
vazio, é preciso esclarecer ainda o que se entende por arte
wireless, diferenciando arte para dispositivos móveis de
arte com dispositivos móveis.
Na primeira vertente, temos os ringtones,
que estão abrindo uma perspectiva interessante de música
urbana, e os filmes e salva-telas especialmente concebidos para
situações de trânsito, entropia, mobilidade
que vem se tornando uma alternativa interessante à mesmice
dos trailers e hits de FM disponibilizados pelas operadoras.
Na segunda, destacam-se os projetos
que estão levando ao limite as possibilidades da telefonia
móvel, explorando a interação dos dispositivos
portáteis com outros equipamentos de telecomunicação
- internet, painel eletrônico, rede elétrica - e as
situações públicas e coletivas - como shows
e cinemas -- apostando numa idéia aristotélica que
ainda parece ser a mais interessante: o homem é um ser político,
é um animal da polis, seu lugar é a rua, o espaço
de compartilhamento e interação, não o escritório...
Os dispositivos móveis nos
colocam em um outro âmbito artístico. O diálogo
com essa cultura da mobilidade é um diálogo com seres
multitarefas, que estão em situações de trânsito
e deslocamento, em estados entrópicos e de aceleração
contínua.
Isso faz com que tenhamos que repensar
nossos parâmetros de criação e recepção,
haja vista que é uma arte que é disponibilizada em
equipamentos que servem a "n" funções -
tocar música, ver vídeo, acessar a conta bancária,conferir
agenda, falar- e que são utilizados quando estamos envolvidos
em mais de uma ação - pedindo a conta no restaurante
e usando o celular, por exemplo.
Nesse sentido, vale a pena discutir,
dois projetos realizados no Life Goes Mobile; “Argos”
de Helga Stein e “Constelações” do coletivo
Re:Combo. Ambos lidaram com situações de compartilhamento.
Ambos, também, exploraram as novas possibilidades estéticas
comunicacionais, porém de formas curiosamente distintas.
No caso de “Argos”,
privilegiou-se as formas pelas quais as situações
de compartilhamento redesenham individualidades e optou-se pela
reconfiguração completa dos atributos de alguns acessórios
de comunicação sem-fio, sem alterar, contudo suas
funcionalidades.
Inspirado em Argos Panoptes, gigante
mitológico de cem olhos, o “Argos” de Stein é
um aparato de visão que conta com a participação
do público para construir um retrato coletivo e mutante,
formado por olhos e bocas, que são as partes mais expressivas
da fisionomia humana.
O aparato de visão era semelhante
a uma máscara e levava ao limite o conceito de “imagens
vestíveis” (wearable images). Nele foram acoplados
visualizadores de imagens digitais da Nokia (monóculos e
medalhões), para onde o público enviava, por conexão
via infravermelho, imagens de olhos e bocas feitas em celulares
equipados com câmeras fotográficas.
Os olhos fotografados e enviados
pelo público aos monóculos eram vistos ao mesmo tempo
por quem vestia o aparato e por quem o observava. Já as imagens
de bocas que ocupavam os medalhões, eram vistos apenas por
quem os observava.
Nesse jogo de olhos nos olhos, boca
na boca, emergia um rosto que se configurava ao acaso, com piscadelas
e murmúrios aleatórios materializados no cristal líquido.
“Argos” lançava,
assim, ao público não só questões sobre
como as novas tecnologias estão participando de uma outra
codificação da subjetividade, descolada da referência
ontológica e mediada pela tela, como sugeria uma cultura
wireless pautada pela miscigenação e mutação,
em consonância com uma contemporaneidade que se faz pela crítica
da sociedade do espetáculo a partir do espetáculo
de si mesmo.
Uma espetacularização
autônoma, criativa e corrosiva que se constrói pela
diversidade fisionômica e pela forma particular com que cada
pessoa manipula o equipamento para obter a imagem: fotografando
outros ou a si próprio e enviando pela conexão mais
acessível no momento (seja ela por infravermelho, bluetooth
ou wi-fi).
Se “Argos” de Helga
Stein obrigava-nos a utilizar um equipamento fadado a se tornar
fetiche adolescente (meldalhões, à la camafeu, e monóculos,
semelhantes aos que se viam nas praias brasileiras nos anos 60),
sem alterar em nada sua mecânica de funcionamento, porém
dando-lhe toda um novo espectro de reflexão pelo uso criativo,
“Constelações”, do coletivo Re:Combo,
apostou numa tendência radicalmente oposta.
Sem recorrer a acessórios,
nem novos lançamentos, o projeto utilizava recursos de envio
de mensagens de texto através de celulares (SMS) como forma
de alimentação de recursos da web, revertendo a lógica
desse sistema que, a priori, é pensado de celular a celular.
Os recados e textos enviados a um
número específico podiam ser lidos numa projeção
no teto do espaço expositivo, porém as mensagens recebidas
apresentavam-se como estrelas, agrupando-se em constelações.
Ao serem acessadas pelos visitantes
(através de blutooth, direcionados para cada uma das estrelas),
revelavam-se os conteúdos das mensagens e dava-se sentido
à constelação que tinha como parâmetro
de configuração a localização geográfica
de onde foi enviada a mensagem e a hora e o minuto de envio.
Idealizado por H.D. Mabuse, Haidée
Lima e Diego Credidio, o projeto “Constelações”
aponta questões que ecoam para além do universo das
comunicações interpessoais: no imenso fluxo de troca
de informação que ocorre entre as pessoas: Como seria
uma forma de visualização do que ocorre em tempos
e espaços não necessariamente conectados?
Distribuição, mobilidade,
desconexão. Palavras-chave de uma cultura que nos impõe
refletir sobre a recepção em ambientes de constante
fluxo, em condições entrópicas, onde o leitor
está sempre envolvido em mais de uma atividade (dirigindo,
olhando um painel eletrônico e falando ao telefone, por exemplo),
interagindo com mais de um dispositivo e desempenhando tarefas múltiplas
e não-correlatas.
Criar para essas condições
implica, por isso, repensar as condições de legibilidade
e as convenções e formatos da comunicação
no âmbito de práticas culturais relacionadas à
ubiqüidade.
Daí a arte wireless, que
esses projetos anunciam, nos obrigar a interrogar: Como fazer uma
arte para ser experimentada "entre" outras coisas? Como
se relacionar com esse novo olhar, pautado pela dispersão
e distribuição?
Responder, imediatamente, neste
artigo essas questões seria leviano. Não apontá-las,
entretanto, seria eximir-se da reflexão sobre o impacto epistemológico,
semiótico e político da cultura da mobilidade que
se anuncia para além e através nos novos dispositivos
de comunicação sem-fio.
Notas:
1
Participantes do Life Goes Mobile: Angelo Palumbo Giselle Beiguelman,
Helga Stein, Izo Levin, Luiz Duva, Lucia Koch, e Re:Combo
Giselle
Beiguelman
Escritora, artista e professora da pós-graduação
em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, editora
da seção novo mundo da revista eletrônica Trópico
e colaboradora da Leonardo Eletronic Almanac, Iowa Web Review e Cybertext,
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