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Realidade Virtual X Realidade do Virtual: O Controle do Simulacro e a Ética da Criatividade

 

Por Rodrigo Fonseca
Número 53

Resumo:
O presente texto vem problematizar a indistinção que se dá entre a imagem conceitual da "realidade do virtual" em relação à imagética gerada pela simulação digital, rotulada como "realidade virtual". A concepção do virtual, na condição de velocidade absoluta, movimento imanente aos ritmos criativos do tempo, portanto, ao ser diferenciada da noção de virtual ligada aos fluxos binários do virtual tecnológico, poderá nos motivar a pensar aqui duas questões que remetem a tal realidade contemporânea: a prática da imaginação, em si, criativa, experimental, e a prevalência do imaginário, adaptável e apenas recognitivo. A primeira nos convida a afirmar a necessidade de experimentação de uma "micro-ética", nos encontros da internet: em vez da conformação da subjetividade aos ritmos cadenciados pelos simulacros digitais, propõe-se aqui uma prática de composição do Eu, como um "personagem do virtual", imaginado para se exercitar uma liberdade despersonalizada, pré-subjetiva, por modos de usar a internet e de contagiar, por ações criativas, novos afetos coletivos.

Há uma antiga noção que, se pensada com a devida cautela, poderá nos ajudar a compreender, nos usos da internet e no consumo de softwares, tais como videogames e simuladores, certas implicações entre a criatividade imaginativa e o controle tecnocrático do imaginário: esta será a idéia de "virtual". Os insistentes jargões dos porta-vozes publicitários da indústria da digitalização não cessam de se desdobrar em rótulos, revestidos de uma sonoridade sedutora, tais como: “mercado virtual”, “banco virtual”, “loja virtual”, “amizade virtual” etc. Mas a razão primeira do equívoco no uso do termo “virtual”, parece ter começado quando a multimídia o reivindicou, para seus fins mercadológicos. Criou-se, em torno da palavra, uma atmosfera imagética cintilante ou uma eufonia retórica, de uma realidade midiática, cada vez mais conveniente às demandas do controle tecnocrático digital. “Realidade virtual” se tornou assim uma palavra de ordem para o consumidor dos produtos informáticos mas, freqüentemente, empregada a contra-senso.

Para que as situações coletivas de atividades, de encontros, de cruzamentos e de criação na internet sejam aqui pensadas, a partir da questão do virtual, é necessário que se considere, em primeiro lugar, que nossas vidas andam em vários ritmos, muitos deles nem sempre perceptíveis: é a nossa existência “pré-subjetiva”. Mas eis que tais ritmos passaram a ser, sorrateiramente, cadenciados pela recente lógica das tecnologias da simulação. É preciso, diante disso, assumir que muitos de nossos insuspeitados hábitos perceptivos, mnemônicos, imaginais e de produção de sentido são, com impassível freqüência, urdidos pelas máquinas de gerenciamento da informação. É para estes grandes dispositivos da comunicação que se manifestam pelos regimes de codificação do sentido, a se impingirem sobre a nossa imaginação e sobre o imaginário coletivo.

Voltemos, antes de tudo, o olhar para como o pensamento filosófico contemporâneo vem abordando a questão do virtual. O mundo, nos é dado "fenomenalmente", numa multitude infinita de coisas sensíveis. Na realidade do presente vivido, essas "coisas" percebidas encobrem-nos a sensação do todo ilimitado, irrefreado, composto por dinamismos irredutíveis. Mas eis que a evidência contradiz, aparentemente, esta intuição, pois vemos efetivamente coisas, distinguimo-nos como uma coisa em relação a outras. O real, porém, se move por meio de uma força onipresente, una e múltipla como um jogo de forças e de ondas de força, acumulando-se num dado ponto quando afrouxam noutro; um mar de forças agitadas por tempestades, em perene mudança e em perene refluxo. Gabriel Tarde, contemporâneo de Bergson, assinalava que até mesmo os átomos, última unidade elementar que se cria homogênea, estável, se revela múltipla, cuja diversidade interna executa movimentos de grande imprevisibilidade. Nas palavras de Tarde: "Sob a calma aparência que a percepção nos dá, um turbilhão se diz, num ritmo vibratório, algo infinitamente complicado." (Tarde, 2003, p. 11) Como antecipara Gabriel Tarde, a realidade linear e seqüencial da nossa consciência tem como origem, entretanto, uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de movimentos múltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes: paradoxais1.

A simplicidade da natureza que apreendemos sensorialmente é, com efeito, o resultado de uma complexidade infinita, e que, sob uma aparente uniformidade, se encontra uma diversidade. Trata-se de uma agitação, de uma realidade inquieta que subsiste/insiste por trás da calma aparência do vivido, uma intempestividade própria dos tempos "invivíveis". O que nos parece imóvel, na realidade, está prenhe, repleta de movimentos incessantes, infinitos, imanentes, ritmos continuamente dobrados uns nos outros. Como nos diria Fernando Pessoa: "...a sombra íntima de tudo" (Pessoa, 1998, p. 259)2.

Mas afinal, o que vem a ser o virtual? Como se deu o aparecimento desta formidável imagem conceitual. O conceito de virtual, em sua matriz filosófica mais conhecida, possui uma imagem que lhe deu o pensamento de Aristóteles. O filósofo detém-se para explicar toda a dinâmica vital como a passagem de potência - ou virtude - ao ato, quer dizer, à realidade sensível, e vice-versa. Deste modo, o ponto de partida de seu conceito de virtual trata então de relacionar, na realidade, três elementos fundamentais: a potência, o ato e, como mediador, o movimento.

O esquema do virtual aristotélico começa por distinguir, na gestação contínua da realidade do universo, uma relação dialógica entre o "real" e o "possível". Sob esta rubrica da tensão dialética, Aristóteles instituiu uma equivalência entre atual ( ato ) = real; e virtual ( força ) = irreal ou ilusório. Todo e qualquer movimento do mundo trata-se, deste modo, de um jogo agonístico, por meio do qual surge um par de conceitos opostos que ele chama de "dynamis / energeia". Aristóteles recorria então à noção de virtual para justificar esta ontológica oposição vigente, entre "possibilidade" e "existência"3.

A lógica do sistema aristotélico obedecia ao princípio da "identidade", da recognição e da não-contradição no pensamento, cuja premissa dispunha que não seria possível existir, ao mesmo tempo, "A" e "não-A". Isso quer dizer que, entre várias possibilidades, apenas uma era realizada em cada momento, sendo que o virtual serviria apenas para hierarquizar, com a sua força germinal, as possibilidades realizáveis. É partindo desde ponto que vale, de ora em diante, pensar a diferença radical de concepção que Henri Bergson e Gilles Deleuze deram a essa clássica imagem do virtual. A proposta vem, em parte, de Scot, de Spinoza, de Nietzsche e de G. Tarde, por um modo de pensar os ritmos, as linhas de força não formadas, as velocidades e as intensidades que ainda nem nome têm e que talvez nem sejam apenas da ordem dos dinamismos humanos.

O conceito de virtual trafegou, desde os gregos Antigos, pelo pensamento escolástico e pela teologia, na Idade Média. Depois ele foi abordado pela filosofia e pela ciência modernas, especialmente pela física óptica. Parcialmente reformulado, aqui e ali, ora como um adjetivo, ora como virtude, ou agora, como se dá, na condição de um rótulo oportunista do marketing da web e do mercado da tecnologia da simulação digital. Mas foi Henri Bergson, ainda no fim do século XIX, quem decidiu abraçar, diferentemente, essa difícil idéia de virtual. Só que ele o fez a partir de uma outra entrada conceitual.

O filósofo tomou o virtual em sua natureza "paradoxal". Para tanto, ele precisou repensar e questionar a imagem que lhe dava o pensamento clássico. Isso porque, sob o princípio negativo da "contradição" - algo não pode "ser" e "não-ser", ao mesmo tempo – jamais encontraremos a realidade do virtual. Este torna-se, portanto, a imagem conceitual de uma realidade que passa a "subsistir", ou a "insistir", para aquém dos tempos da existência sensível, da percepção ou da cognição. Guiado por esta idéia, ele procurou conceber uma espécie de genealogia do virtual e do seu par processual, o "atual". Bergson nos diz que, quando se reduz o virtual a um simples possível, tal como Aristóteles, dialeticamente, o desejou, as relações virtuais/atuais passam a ter uma forma negativa, de uma polaridade entre espaços vazios4. Dito de outro modo, o pensamento ocidental, que até então trabalhava sustentado no princípio de não-contradição, passa agora a trabalhar com o princípio do paradoxo. Isto significa que agora, a partir de Bergson, o pensamento tem um mundo inteiramente "problemático", de co-implicações irrequietas. O virtual é, para Bergson, a origem não manifesta de tudo, o dinamismo de tempos absolutos da natureza, imperceptíveis para nós. Com Bergson, não há mais dúvidas quanto a isto, mudou-se a definição conceitual do virtual, passando-se do "germe aristotélico", da virtude potencial dialógica, à multiplicidade processual, paradoxal e criativa do Tempo5. O virtual é, para Bergson, a origem não manifesta de tudo, o fundamento "duracional" de tempos da natureza, imperceptíveis para nós. A imagem do virtual é, desde então, vibrante e imanente, a realidade do movimento e das velocidades absolutas. O virtual será, a partir de Bergson, definido como um evento singular incorporal e subsistente a tudo aquilo que existe para as nossas lentas apreensões sensitivas.

Dito de outra maneira: não há experiência do virtual como tal, uma vez que ele não é dado e não tem existência psicológica. Por natureza, o virtual é incaptável ao horizonte da realidade vivida. É que, por natureza, os problemas que perfazem o virtual escapam à consciência. Em resumo, a realidade linear e seqüencial própria da consciência tem como origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de movimentos múltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes. Este é o paradoxal devir. O mundo do virtual é, para ambos os autores, um universo não abarcável pelo conceito e que reside nas regiões de existência fora do contato com o sujeito percipiente. Isto quer dizer que as virtualidades agem e se encarnam, no mundo sensível, mas por princípio, elas são silenciosas, jamais dadas na experiência psicológica. O virtual possui, no entanto, uma plena realidade e é justamente a partir dela que a existência sensível é produzida. Já se disse que, ao contrário do que supõe o pensamento metafísico, transcendental e dialético, o virtual não é uma entidade ideal, possível ou ilusória, por princípio contraposta a uma realidade "atual". Nesse mundo de forças informuladas, "incorporais", o virtual, em sua natureza, é a velocidade de tempos, imaterial e inexpressa. Ele perfaz a presença, mas nem por isso é acessível para nossas sensibilidades. É um imenso domínio de delicadas diferenças, dessa gestação criativa de sutis vibrações, ora empurradas ou retidas, ora comprimidas ou descontraídas, ora estratificadas ou amalgamadas.

Para o pensamento de Bergson, a grande dificuldade para se imaginar o tempo do virtual advém da vetusta representação que se faz da própria imagem abstrata da "duração". Porque o movimento, quando percebido pelos nossos sentidos, já é também o signo palpável de uma duração homogênea e mensurável. Só o pensamento do virtual pode criar uma imagem da duração "pura", ou como diria Bergson, da duração em sua pureza original. A realidade do virtual, ou do devir, para o autor, é a coexistência de durações muito diferentes, superiores e inferiores à nossa, e todas comunicantes. O que dá espessura representável à "pura duração", é a nossa memória. Uma vez "educada", ela passa a condensar os momentos múltiplos de duração, em instantes perceptivos.

A concepção bergsoniana de virtual foi assimilada e burilada por Deleuze, que se manteve, por sua vez, próxima aos preceitos de Bergson. A realidade do virtual supõe, refinado pelo pensar deleuziano, um plano imenso de linhas de forças que operam nos mínimos eventos, no infinitesimal, nos mais ínfimos movimentos da realidade. O virtual, em seu movimento processual com o atual, em co-implicações imanentes, ativa tudo aquilo que perdura o suficiente para que os nossos sentidos possam captar como formas, matérias e coisas, enfim, para que possamos perceber, objetivamente, uma realidade. A virtualidade, de sua parte, pode ser pensada como um movimento singular, como a repetição rítmica de forças diferenciantes, pelas quais o mundo não pára de se realizar. Neste momento, vale dizer, o virtual é a força do tempo do devir, uma combinatória de encontros de linhas de força que por si sós não têm forma, nem significação, que também não possuem conteúdo nem realidade empírica, mas que perfazem toda a plenitude sensível do real6. O virtual é a força auto-diferenciante que, em seu movimento repetitivo, põe em comunicação a simultaneidade, a contemporaneidade ou a coexistência de todas as séries divergentes do tempo num encontro conjunto de amplexos7.

Não é novidade que, num mundo crescentemente "povoado" por micromáquinas e, sob esse atual imperativo da conexão, estejamos a correr riscos de nos expormos a mecanismos de sujeição, a produções de subjetividade veladas, porque muito velozes, sob os ardis da realidade virtual, movidos pelos poderes empresariais tecnocráticos. É também sabido que a internet, a despeito de seu alardeado "descentramento", não existe alheia às suas estruturas centralizadas de controle, e ignorá-las é ignorar a parte dela que a faz funcionar, ao menos como uma imensa e ubíqua máquina tecnológica. Em suma, as máquinas informáticas e telemáticas já logram operar francamente no ritmo de nossas percepções e da nossa sensibilidade.

Os onipresentes meios técnicos digitais produzem, continuamente, fluxos "multi-informacionais", que percorrem o ambiente das redes, visando a controlar, de modo sub-reptício, a reprodução de nossas subjetividades. E isto se dá de maneira cada vez mais veloz, intensiva e sutil. Na maioria do tempo de convívio com as imagens digitalizadas, nem sequer notamos mais que os fluxos tecnológicos tornam-se cada vez mais importantes para o controle dos ritmos corporais, porque esses fluxos simulam novos meios de extensão, de virtualização do próprio corpo. Significa que as elites tecnocráticas não se contentam em fornecer a ele grandes braços virtuais ou um cérebro ampliado: os fluxos que seus dispositivos técnicos produzem penetram nosso corpo, modificando-o, já que não raro alcançam extrapolar as nossas relações psicomotoras naturais.

A "realidade do virtual", esta máquina de devires que urde criativamente os ritmos vitais, continuamente reabertos pela força inovadora do futuro, deve ser pensada para muito além dos ambientes digitalizados. No que diz respeito às questões da "realidade virtual", o fato é que se criou, nestas últimas décadas, pela performance tecnológica de velocidades sobre-humanas de fluxos digitalizados e de multilinearidades, um espaço simulacral de "mediação imediata". O próprio desktop em nossa tela ou os videogames hiperrealistas são alguns dos exemplos mais triviais da sofisticadíssima produção técnica de universos imaginários simulados, cada vez mais convincentes à nossa lenta percepção. Tal simulação possui, por um vertiginoso coeficiente de velocidades, uma eficácia total para iludir, para além da perfeição, os nossos sentidos corporais. Não é por acaso que tudo se joga, em investimentos econômicos, na tentativa de povoar esse novo espaço que, na expressão de Bragança de Miranda, é o ambiente propício às tecnologias de "controle do imaginário".

Ora, um sistema penetrante e sutilmente opressivo de controle pode imprimir ritmos constrangedores sobre os nossos corpos e sobre a nossa imaginação, podendo também reordenar os dinamismos do nosso modus vivendi. A interferência programada dessa dimensão vital que concerne à nossa maneira de perceber, de agir, de sentir, aos nossos regimes de signos habituais, constrói um perfil compósito das necessidades de consumo tecnológico e informacional, nem sempre afinadas com as nossas aspirações íntimas. Miranda também apontou corretamente, a emergência de um sintoma ligado aos usos coletivizados das máquinas virtuais. Dá-se, para ele, uma espécie de "alucinação consensual" que envolve milhões e milhões de usuários. Afinal, como argumenta Bragança, os estados em que perceber, ver imagens ou escutar sons que podem não existir em nossa realidade "natural", material, não seria o que chamamos de alucinações?

É esse o ambiente que o chamado de "mundo comunicacional e informático", ostensivamente mapeado e reproduzido como um único logos, nos recobre. Obstinadamente realimentados pelas sobrecodificações hegemônicas, ainda mais agudas na internet, corremos um perigo de sucumbirmos, em nossa apreensão da realidade, a meros dualismos sem saída, sob a égide exclusiva de relações binárias e de mobilidades pré-coordenáveis. Existe, obviamente, uma tal opressão tecnológica, em virtude desses mecanismos de controle binarizante do saber, dos signos e das imagens, que reduz, drasticamente, o campo de experimentação do nosso desejo, confinando-o a uma simples divisão dualista preestabelecida. O desejo, como potência livre da vida, parece assim laminado pelas forças de inibição próprias à lógica binária da realidade virtual. Nomes, ritmos, memória e expectativas vão sendo assim pré-orientadas. A realidade digitalmente simulada corre, deste modo, o risco de fazer atrofiar, por assim dizer, a nossa atividade da imaginação, por sua natureza, sempre criativa. Igualmente se fala a respeito de todo o nosso universo de imagens, responsável por gerar sentido em nossos mínimos gestos, que já estariam por demais insuflados por um desejo subreptício, ingênuo e inconfessável de atingirmos uma compatibilidade total com o "tecnocosmos digitalizado". Isso quer dizer que, na condição de consumidores das tecnologias multimidiáticas, nos alienamos do próprio desejo como ele poderia ser: uma avidez afirmativa da existência. Ao contrário, continuamos a nos concentrar, ingenuamente, num objeto e na sua posse. Esse objeto externo é alheio ao real poder vital, livre e criativo, como diria Nietzsche, da nossa "vontade de potência".

As máquinas técnicas, em suas velocíssimas performances, se passarem a esquadrinhar o nosso imaginário, elas poderão interromper o desejo tal como Deleuze nos propunha: a potência impessoal de um processo que, antes da imagem da posse de um dado objeto, seja apenas uma vontade criativa da vida. Por fim, não experienciamos a web de modo "rizomático". Pelo contrário, somos constantemente pré-conduzidos em nossas escolhas, pelos enclaves tecnocráticos que convergem seus interesses no "controle do virtual".

Não se devem confundir, por fim, a realidade do virtual e a simulação digitalizada do real. A primeira não deve ser coincidente, como vimos, com a chamada "realidade virtual". Ao contrário do virtual como uma palavra ou uma imagem do pensamento que diz respeito aos micro-dinamismos criativos da vida, inorgânica ou não, o simulacro virtual é uma invenção tecnológica poderosa sobre a nossa sensibilidade, que produz uma realidade perceptiva controlável, em filigranas, a partir de seus ultra-velozes fluxos digitalizados.

Uma simulação bem sucedida seria, desse modo, a inibição mesma do virtual. Este desapareceria do imaginário criativo e se tornaria em algo regrado, prolongando o espaço hegemônico da cultura de imagens estereotipadas. Condicionados pelos chaveamentos binários da percepção ou da imaginação induzidos pelo simulacro digitalizado, não haveria nenhuma chance, por exemplo, de sairmos de nós mesmos, de nos "desorientarmos", de nos surpreendermos, de criarmos, de criarmo-nos, implicados num futuro, imediato e singular.

A organização sistêmica implicada nos horizontes tecnocráticos somente pode sobreviver se investir, massivamente, nas produções conformadas e nas codificações "mecânicas", fechadas e polarizadas da nossa subjetividade. Tais máquinas tecnológicas, com seu logos técnico de hiper-realidade têm produzido fluxos simulacrais que percorrem a dimensão da imagem que construímos de nossa suposta subjetividade, de maneiras cada vez mais ostensivas. Elas alcançaram modos de controle que se operam nos ritmos mais ínfimos da subjetividade. Conformam-se, continuamente, inumeráveis fluxos que passam pela subjetivação. Podemos exemplificar: há, nos planos coletivos, fluxos de consumo, fluxos de arte, fluxos científicos, fluxos de redes de computadores, fluxos opinião etc. Foucault nos traduz esta idéia, com perspicácia: "Esses fluxos são constantemente modulados em função de uma axiomática, permitindo que potências, como a da Comunicação, participem dos processos de subjetivação, a ponto de ditar-lhes ritmos". (Foucault, 2002, p. 195)8 Daí que esses "fluxos tecnológicos", tais como Deleuze os nomeia, tornam-se mais e mais importantes para o controle dos afetos, porque eles oferecem, com a evolução dos dispositivos de interface, meios de extensão, de interferir, em filigranas, nas virtualidades do corpo.

Em meio a essa incompreensível miríade de fluxos existenciais que ora se confrontam, ora atravessam e transformam, de muitas maneiras, a nossa experiência coletiva de outra dimensão chamada de subjetividade, enfrenta-se hoje na internet, segundo muitas vozes, a instauração de uma espécie de "coquetel subjetivo", metáfora que ilustra uma situação em que cada indivíduo é envolto por várias subjetividades transversais coletivas, no cruzamento massivo de inúmeros vetores, de persistentes mecanismos de subjetivação9. Segundo a autora Sibilia, as empresas informáticas e midiáticas se esforçam para lançar e relançar no mercado novas formas postiças de subjetividade, estereótipos imaginados que serão adquiridos e, de imediato, descartadas10. Para Sibilia, tal prática realmente alimenta uma espiral de consumo de "modos de ser", ou seja, de modelos identitários efêmeros, descartáveis. São chamados, por Sibilia, de "upgrades subjetivos". (Sibilia, 2002, p. 33)

Para finalizar: como se pensar, nos modos possíveis de "freqüentação" da internet, uma performance que se aproxime de uma resistência criativa, ou de uma dissidência nômade, que pudessem desencaminhar os velozmentecontrolados regimes da imagem? Essa questão ainda precisa ser encarada, como uma espécie de exercício ético na interatividade. O chamado "webber" tem, aparentemente, uma miríade de direções, nas quais ele pode se mover de modo absoluto e livre. Mas se a web já está traçada por um logos altamente sobrecodificado e, se as suas linhas já estão predeterminadas, cada vez mais distantes da multiplicidade rizomática, o freqüentador da internet deverá explorá-la com uma espécie de “idiossincrática sensibilidade”. Quem sabe se ele não redesenha seus movimentos, resistindo aos dinamismos de tempos previamente definidos pela onipresente máquina simulacral? O "heterônimo de desktop" que criamos para freqüentar, por modos impessoais, a rede digital, tem a tarefa de se exercitar numa coletiva micropolítica da interatividade. Ao buscar experimentar na internet - e para além dela - a produção contínua de uma subjetividade imaginativa, o personagem interativo inventa uma persona que se componha como uma máquina existencial despersonalizada, porém afirmativa de um apetite mútuo pela preservação da vida. Tal vontade de potência é a de nos intensificarmos como personagens-encruzilhada, catalisando desejos para além da mera oposição entre objeto e do sujeito, entre o Eu e o Outrem. Levar em conta a realidade do virtual em nossas vidas é, por fim, assumir o paradoxo, a composição de virtualidades não-humanas e de devires moduláveis, como uma imagem-ritmo, como produtores de um imanente ethos intensivo, singular, múltiplo e criativo.


Notas:

1 Como diria Van Gogh: "...animada não sei por que comoção íntima..." (Van Gogh, 2002, p. 60) fervilha sob a nossa realidade percebida, na espessura de uma matéria efervescente, radiante, múltipla, inquieta, marulhosa, espumante, há uma vida, engendrada por miríades de mudanças ínfimas.
2 Mais de uma vez temos citado o poeta ao abordarmos a questão do virtual, justamente por causa de sua persistente curiosidade a respeito dessa enigmática força: "A realidade verdadeira de um objeto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço". (Pessoa, 1998, p. 481)
3 Tal movimento de dicotomias moduladas numa série de outras oposições, em infinita oscilação pendular. Vale notar que, fundado num modelo dialético, próprio ao sistema mental da Grécia Antiga, a idéia de virtual submetia-se também ao princípio clássico desse raciocínio dualista. ( grifo nosso )
4 Além disso, há uma outra metáfora fundamental ligada à imagem do virtual tecnológico: a "energia". O virtual não é um potencial bruto, relativo a fenômenos energéticos. O virtual não é da ordem da energia, pois esta, ao contrário daquele, se “entropiza”.
5 Ou como diz François Zourabitchvili: "Não é mais uma oscilação entre dois pólos, mas a correlação de duas faces inseparáveis." (Zourabitchvili, 2004, p. 23)
6 Resumindo, há uma ambigüidade constitutiva do relacionamento entre atual e virtual, uma vez que todo objeto é virtual e atual, a um só tempo. Eles são distintos, mas indiscerníveis, como duas faces da mesma imagem. (Levy, 2003, p. 102) Noutras palavras, são duas dinâmicas inversas e complementares da existência: a atualização de formas e a involução – e não evolução - que destina o mundo a redistribuições incessantes. (Zourabitchvili, 2004, p. 31)
7 Esse maquinismo de devires heterogêneos, com velocidades singulares e imprevistas, faz oscilar um paradoxal jogo de interfaces, entre o virtual e o atual. Bergson e Deleuze recriaram o virtual como um conceito para que pensemos não o mundo da matéria formada, mas sim o da diferenciação imanente que se faz mundo. Esse mundo das intensidades e das suas durações revela um mundo vital não-sensível e ainda sem nome que, num processo complexo de dinamismos, se tornam ato, se atualizam em nossa realidade humana dos sentidos e da linguagem. ( grifo nosso )
8 Entre os vários modos de explorar as ocasiões de encontro na internet, situações engendradas pelas grandes potências empresariais, um deles é o de espreitar, sistematicamente, todos os nossos contatos na rede. Um bom exemplo é o dispositivo de comunidades "virtuais", concebidas no mínimo para saber se esses encontros e reencontros podem render, em algum momento, certo lucro.
9 Estabelecerem relações sem estarem limitados pela proximidade e pelos marcadores de aparência, aproveitando todo o potencial de liberdade contido na máscara e no anonimato. (Vaz, 2002, p. 45)
10 Podemos aqui incluir o recurso dos avatares, nicknames, usernames etc. que são os pseudônimos da internet. ( grifo nosso )


Referencias:

Bergson, H. (1999) Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes.
Bragança, M. (1996) O Controlo do Virtual. Lisboa: Ed. Univ. Nova de Lisboa.
Deleuze, G. (1988) Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal.
Fink, E. (1983) A Filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença.
Levy, T. S. (2003) A Experiência do For a: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Pessoa, F. (1999) Livro do Desassossego. São Paulo: Cia das Letras.
Tarde, G. (2003) Monadologia e Sociedade. Petrópolis: Vozes.


Ms. Rodrigo Fonseca e Rodrigues
Professor de Teoria e Métodos de Pesquisa em Comunicação (FCH/FUMEC – BH) e de Estética e Sociologia da Informação (FES-BH), Brasil.