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RAÍZES CULTURAIS E RELIGIOSAS DA FOLKCOMUNICAÇÃO NO BRASIL: HERANÇAS DA CATEQUESE JESUÍTICA

Por Antonio Teixeira
Número 60

Os jesuítas, pelo domínio da informação, até então apenas bem utilizada pelos judeus, estabeleceram e consolidaram o seu poder, firmando a sua posição na Igreja e sobrepujando-se a adversários e concorrentes na cristianização e europeização dos mundos descobertos" (Luiz Beltrão - "Os jesuítas e a informação").

RESUMO: Este ensaio analisa as raízes culturais e religiosas da Folkcomunicação no Brasil, com base nas heranças da catequese jesuítica no período colonial. Parte da hipótese de que as práticas folcomunicacionais fazem parte da raízes culturais brasileiras, associadas aos rituais religiosos introduzidos pelos missionários da Companhia de Jesus. A hipótese é apresentada a partir de um enfoque peculiar: as estratégias de comunicação utilizadas pelos missionários jesuítas. Como fundamento explicativo, são utilizados referenciais analíticos de Gilberto Freyre e Luiz Beltrão. Resgata a contribuição desses autores para a análise do desenvolvimento das formas de comunicação que foram fundamentais para constituir uma civilização e estabelecer um sistema cultural: a língua oral e escrita, a música, a dança e o teatro.

INTRODUÇÃO

Estando os índios brasileiros "desprovidos" de civilização e religião cristã, vieram os jesuítas como "civilizadores" e mestres católicos. Vivendo com os índios eles tornaram-se "meio e mensagem na comunicação de uma civilização cristã, que marcaria indelevelmente a cultura brasileira", como afirma Gilberto Freyre, em Casa-grande & Senzala .   Entre os meios de comunicação usados pelos jesuítas, seguindo uma ordem prática, podemos destacar os estudos lingüísticos, musical, coreográfico e teatral. A aquisição do conhecimento língüístico foi o ponto de partida para o exercício catequético-pedagógico a que se destinavam. Com isso, abria-se um leque de alternativas, como a música, a dança e o teatro, que se intercomplementavam, assegurando o alcance dos objetivos pretendidos.

Outra chave do êxito atingido pelos jesuítas foi a compreensão que possuíam da afinidade da psicologia com a pedagogia e as artes. Anchieta revelou essa compreensão no transcorrer do desenvolvimento de suas atividades apostólico-educativas, sempre subsidiadas pelos recursos artísticos e lúdicos.

Este ensaio tem como objetivo analisar as raízes culturais e religiosas da Folkcomunicação no Brasil, com base nas heranças da catequese jesuítica no período colonial. Parte da hipótese de que as práticas folcomunicacionais fazem parte da raízes culturais brasileiras, associadas aos rituais religiosos introduzidos pelos missionários da Companhia de Jesus. A hipótese é apresentada a partir de um enfoque peculiar: as estratégias de comunicação utilizadas pelos missionários jesuítas. Como fundamento explicativo, são utilizados referenciais analíticos de Gilberto Freyre e Luiz Beltrão.

O ensaio resgata a contribuição desses autores para a análise do desenvolvimento das formas de comunicação que foram fundamentais para constituir uma civilização e estabelecer um sistema cultural: a língua oral e escrita, a música, a dança e o teatro.

As estratégias dos jesuítas mostram o uso combinado da cultura e da religião como instrumentos de comunicação intercultural, com o objetivo de promover a catequização dos indígenas. Visto que se trata de um tema apresenta acentuada relação com a História do Brasil, é inevitável situar historicamente a ação dos catequizadores

O CONTEXTO DO SURGIMENTO DA FOLCOMUNICAÇÃO JESUÍTICA

Os franciscanos foram os primeiros religiosos a se estabelecerem no Brasil, ainda na época do descobrimento. Frei Henrique de Coimbra, pertencente a esse grupo pioneiro celebrou a primeira missa em solo brasileiro, em 26 de abril de 1500. Entretanto, foi com a chegada dos jesuítas, em 1549, com o primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Sousa, que o empreendimento catequético consolidou-se. Meio século havia decorrido desde a chegada de Cabral. O Brasil continuava "selvagem". Fazia-se urgente sua "civilização". Para tal empreitada, D. João III incumbiu os jesuítas, que gozavam de boa reputação religiosa na Corte. O rei não desejava ver nas terras que estivessem sob seu domínio a profissão de outro credo. Além disso, Portugal era católico por tradição. Pedro Calmon (1969) relata que os grandes descobrimentos portugueses foram comemorados no amanhecer do século XVI com a construção de um monumento digno dessa alegria: a igreja e o mosteiro de Santa Maria de Belém, "junto ao mar, exatamente na praia das despedidas -e do feliz retorno". O padre Manuel da Nóbrega, que já adquirira vasta experiência missionária na África e na Ásia, foi designado para chefiar o primeiro grupo, composto por João de Piscueta, Antonio Pires, Diogo Jácomo. Leonardo Nunes e Vicente Rodrigues.

O Rei incumbiu o Governador-Geral de fundar uma cidade no Brasil, na Baía de Todos os Santos, com o objetivo de impor respeito aos índios (que freqüentemente se rebelavam contra os colonos), fortalecer a resistência aos ataques dos invasores estrangeiros e centralizar o poder, visto que o sistema de capitanias estava falido, incapaz de um exercício administrativo consoante com os desígnios da Coroa.

Gilberto Freyre afirma que os portugueses no Brasil não encontraram um povo articulado, organizado em império ou constituído em semicivilização como os espanhóis encontraram os mais e os astecas no México ou os Incas no Peru, autores de uma resistência feérea, que culminou com o quase total extermínio dos aborígenes por parte dos colonizadores. A resistência dos índios no Brasil, apesar de tênue, manifestava-se sempre que um novo grupo de portugueses aportava na costa brasileira. Quando o Governador-Geral chegou com os jesuítas, coube ao Velho Caramuru o encargo de evitar a dispersão dos nativos, uma das expressões da rejeição aos portugueses.

O profundo conhecimento que Caramuru possuía sobre os costumes e linguagem dos nativos (pois já vivia no Brasil desde a chegada das primeiras expedições colonizadoras), foi uma contribuição singular para a interação entre os sacerdotes e seus futuros fiéis indígenas, cujo aspecto de maior relevância nesse processo interativo foi o estabelecimento da intercomunicação entre as referidas partes. Para isso, Caramuru usou como artifício inicial o "diálogo efusivo, carregado de sorrisos e mímicas (imitações do modo de falar dos índios com os jesuítas), a fim de "quebrar o gelo", mostrando-lhes que sua amizade (do Caramuru) com os padres poderia se estender até eles (os índios).

Os catequizadores, por sua vez, tentaram utilizar-se das mesmas estratégias de comunicação empregadas por Caramuru, construindo, assim, os alicerces do processo de intercomunicação entre ambas as partes, suporte elementar da prática catequético-educativa desenvolvida pelos jesuítas e da própria convivência destes com os nativos. Após quatro anos de governo, Tomé de Sousa pediu um sucessor. Duarte da Costa foi nomeado para tal fim, trazendo consigo outros jesuítas, dentre os quais José de Anchieta, muito jovem e na qualidade de noviço, preparando-se para a admissão às ordens sacras.

Com a chegada de Dom Pero Fernandes Sardinha o ensino dos jesuítas foi abalado. O bispo não concordava com o sistema desenvolvido até então, por considerá-lo excessivamente brando. Visava a um rigoroso processo de civilização dos índios, antes da conversão ao cristianismo. Não tolerou a nudez dos indígenas nas reuniões religiosas, apesar da falta de tecidos para vestir tanta gente. A fim de não agravar o choque com o novo bispo, Nóbrega e Anchieta mudam-se para São Vicente, sob a alegação de construírem um colégio, o qual daria origem à cidade de São Paulo.

O governo de Duarte da Costa foi marcado por invasões de estrangeiros e confitos internos - índios entre si e com os colonos e dissensões com o bispo. Mem de Sá, irmão do poeta Sá de Miranda, veio minimizar os conflitos. Exerceu rigoroso controle sobre a costa, conteve a invasão francesa no Rio de janeiro e tornou-se amigo dos jesuítas, decretando leis que convergiam com o plano catequético dos missionários, com o fim do antropofagismo e da guerra dos índios entre si. Decretou também a reunião dos nativos em aldeias, ode edificaram igrejas para os já convertidos e casas para seus mestres jesuítas.

A agregação em grandes aldeias abalou toda a estrutura social dos índios que, acostumados à vida dispersa e nômade, não eram capazes de conceber a forma de vida sendentária que estava sendo imposta. Reagiram, intensificando os conflitos, tornando dificultoso o controle dos mestres. À resistência indígena ao modelo de vida imposto pelos catequizadores, somou-se a influência do poder civil, que pretendia controlar o ensino catequético, a revolta dos colonos causada pela referida agregação. Reunidas todas essas forças, a Companhia de Jesus, suas perspectivas de catequização foram enfraquecendo, e não demorou a decadência, que culminou com o governo de Pombal. Diante disso, os missionários foram compelidos a utilizarem novas estratégias de comunicação com os nativos, tentando uma aproximação maior com eles, mediante o conhecimento da língua indígena, suas danças e músicas.

AS FORMAS DE COMUNICAÇÃO NA CATEQUESE JESUÍTICA

A habilidade para lidar com a informação e a comunicação constitui um diferencial histórico na atuação missionária dos jesuítas em relação a outras ordens religiosas da época. Foi graças a isso, como registra Luiz Beltrão (2001, p.98), que o jesuitismo se tornou "em menos de meio século, na mais potente organização a serviço da Igreja católica". O uso da língua, a música, a dança e o teatro são formas de comunicação que exerceram importante papel na obra missionária dos jesuítas.

A comunicação oral

Para cumprirem sua missão de educadores e evangelizadores, a comunicação oral era imprescindível para os jesuítas. Portanto, aprender a língua dos nativos foi o primeiro passo. Caramuru já dera sua contribuição inicial no processo de comunicação entre os missionários e os índios, mas fazia-se necessário maior solidez estrutural e uma prática dinânima, que assegurassem êxito ao exercício catequético-missionário. Logo cedo os jesuítas perceberam que o domínio da língua nativa seria a principal estratégica de aproximação dos nativos, uma vez que, como registra Luiz Beltrão, em seu estudo sobre o idioma tupi (2001, p.86), para os indígenas, a palavra que traduz o sentido de "inimigo" significa "primitivamente aquele que não fala a nossa língua". Foi considerando essa importância que os índios atribuíam ao idioma, prossegue Beltrão, que os jesuítas "em menos de cinquenta anos, tinham amansado quase todos os selvagens da costa do Brasil. Seu segredo único foi assentar a sua catequese na base do intérprete".

Outro registro da importância da língua para os nativos está na obra de José de Anchieta, em especial em Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões , na qual ele afirma que, em grande parte, o respeito dos silvícolas pelos missionários estava no fato de os mesmos conhecerem outros idiomas, coisa que os nativos "faziam muito caso", a ponto de chamarem os religiosos de "senhores da fala" (apud Beltrão, 2001). Foi por isso que os missionários ficaram anos observando o comportamento lingüístico dos índios, quase com o olhar de antropólogos, com o intuito de conhecer esse universo para dominá-lo estrategicamente. Assim, a poranduba , a conversação dos índios ao pé da fogueira, acompanhada de gesticulação contínua e teatral, acerca dos fatos do cotidiano ou "o resumo fiel do que fez, ouviu e viu nas horas distantes do acampamento familiar" (Beltrão, 2001, p.88), tornou-se um campo fértil para a atuação jesuítica, como forma inicial de aproximação dos nativos.

Os índios se dividiam em dois grandes grupos: os tupis e os tapuias. Os primeiros habitavam o litoral, enquanto os últimos viviam no interior. Daí a razão de o contato dos jesuítas com os tupis ter sido mais intenso, a ponto de o tupi tornar-se a língua-geral, utilizada na catequese. O tupi ocupou um lugar de destaque entre as línguas primitivas, a ponto de tornar-se a mais difundida em extensão geográfica e até meados do século XVIII "era falada de norte a sul, fenômeno responsável pelo enriquecimento vocabular do português, que a substituiu, e pela unidade lingüística do País" (Beltrão, 2001, p.86).

O tupi era um dialeto do guarani, língua primitiva, rica em monossilábicos, quase onomatopaica, usada pelos onomaguás no Peru e pelos guaranis, no Paraguai. Entretanto, o tupi possuía algumas particularidades: não apresentava o "b" no princípio de uma palavra em "m" anteposto e são "mb", "nb", "nd" e "ng" as únicas consoantes que se empregavam juntas. Não tem "f", "l", nem "r". Daí os portugueses dizerem que o nativos "não possuíam fé, nem lei, nem rei". Anchieta ainda diz que eles "não têm 's' nem 'z', usando em seu lugar o 'ç'. Não dispõem de muitas consoantes, mas há variedade e vogais, o que revela sua pobreza fonética. Os nomes dos algarismos eram apenas de cinco, sendo utilizados os dedos para auxiliar o emprego de números maiores.

As crianças ocuparam um papel de destaque no estudo lingüístico. Nóbrega mandou vir de Lisboa vários crianças órfãos para o Brasil, a fim de conviverem com os culumins (crianças indígenas), constituindo uma inteligente estratégia pedagógica, pois enquanto as de Lisboa ensinavam o português aos culumins, aprendiam o tupi usado por eles e vice-versa. E ainda atingiam os adultos. Gilberto Freyre acrescenta ainda que os jesuítas serviram-se principalmente do culumin para recolher de sua boca material com que formou a língua tupi-guarani, o instrumento mais poderoso de intercomunicação entre as duas culturas. Intercomunicação que ele denomina de moral, cultural e religiosa, a qual também serviria de suporte para as trocas comerciais futuramente.

O tupi-gurarani aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos em cultura e até inimigos de guerra, para em seguida aproximá-los dos colonizadores. Segundo Freyre, quando o português predominou sobre o tupi, o colonizador já estava familiarizado com o sotaque indígena. "os rr, os ss estavam amenizados".

Para o exercício catequético os jesuítas optaram pelo método de "acomodação", que respeitava a conservava o que havia de bom nos costumes nativos, ao contrário dos espanhóis, que usavam o método da "tábula rasa", condenando e rejeitando completamente a religião e os costumes. Fernandes relata que "foi a incapacidade de adaptação à mentalidade do nativo o fator responsável pelo êxito do método jesuítico em relação às demais congregações religiosas que aqui aportaram na época da colonização". Esse método produziu efeitos satisfatórios imediatos, porque sem o formalismo das aulas, mas com o método espontâneo e direto do convívio com os mestres e as crianças portuguesas, a aprendizagem desenvolvia-se em clima de diversão, incrementando a retenção do que foi estudado.

Em Piratininga, onde Nóbrega e Anchieta fundaram um colégio, o processo de aprendizagem lingüística desenvolveu-se de uma forma muito peculiar: ainda durante a construção, na qual os índios colaboraram intensamente, os dois padres estavam sempre tetnado manter comunicação com os nativos. Mesmo não entendendo, repetiam constantemente os sons produzidos por eles. Mais tarde, ensinado latim e aaprendendo tupinambá (língua indígena mais comum na região vicentina), Anchieta encontrou muito menos dificuldades que na Baía de Todos os Santos. "Não havendo livros, Anchieta copiava as lições em folhas avulsas. Utilizando as baladas e as cantigas da época, conservando a melodia e adaptando uma letra portuguesa, latina ou tupinambá. E ainda formulava interrogatórios dos quais se utilizavam os confessores" (Castro, s.d).

A música e a dança como estratégias de comunicação

A música e a dança, inerentes à cultura indígena, foram muito exploradas pelos jesuítas, como estratégias pedagógicas e de comunicação. Logo no início, os religiosos perceberam que vários recursos eram utilizados nas festas e rituais, sobretudo para destacar a fala dos pajés, como o maracá, adornado com penas e pintado de vermelho. A fim de "impressionar mais os crédulos irmãos da tribo, os pajés pintavam nos maracás olhos, narizes e, por vezes mesmo, abriram-lhe um orifício no lugar da boca, por onde profetizavam" (Beltrão, 2001, p.93). Era uma forma de combinar signos e mensagens: a fala, a música, os gestos e a encenação.

De forma criativa e adaptativa, os missionários começaram a utilizar esses recursos desde o ensino dos rudimento lingüísticos, aperfeiçoando-as até atingir o auge, no teatro. Na dança, a música era imprescindível. No teatro, Anchieta usou-a intensamente, pois muito agradava os nativos, acostumados a usá-la até mesmo nos rituais religiosos. Para Elza Camêu (1977), a música religiosa entrou deliberadamente no ensino, pois "aí tudo obedecia à finalidade de preparar executantes para as cerimônias da Igreja. Com isso, os jesuítas implantaram uma política musical visando à unificação de uma sociedade, nos moldes europeus".

A música tornou-se a portadora da mensagem cristã por excelência, visto possuírem os nativos a disposição natural para aceitarem o "canto comum", que segundo Fernandes "era uma fórmula de exorcizar o descomhecido: a morte, o mal, a influência dos astros e das forças da natureza. Facilmente abandonavam as palavras cabalísticas de suas canções de ritmo encantatório em favor do formalismo do canto gregoriano".

Manuel da Nóbrega via nas músicas e danças indígenas, "além de um meio de comunicação e aculturação, apenas maneiras e costumes diferentes, mas não opostos à religião cristã e com isso contemporizando com eles, tornou-se um instrumento, um meio. Para facilitar o acesso aos nativos, quer para a comunicação do Evangelho, quer para atraí-los à escola de ler e escrever".

Utilizando a música e a dança como estratégia para transmitir a mensagem cristã aos índios, os jesuítas purificaram o ritual macabro daqueles, que usavam-no para transmitir o medo e o terror aos culumins (como parte integrante da formação das crianças). Gilberto Freyre relata que "os índios tinham o costume de organizar danças destinadas a amedrontar os meninos e incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito aos mais velhos. Os personagens das danças eram figuras exóticas: papões ou figuras de outro mundo, descidas a este para devorar e arrebatar meninos maus". Na explicação de Freyre, os jesuítas conservavam danças indígenas de meninos, fazendo entrar nelas uma figura cômica de diabo com o fim de desprestigiá-lo pelo ridículo, por meio da alegoria e da caricatura.

O teatro como estratégia de comunicação

O teatro foi um dos recursos de maior importância comunicativa de que se serviram os jesuítas, constituindo o estágio mais avançado no processo catequético-educativo. Antes da vinda dos missionários os colonos portugueses representavam autos nas igrejas, prática comum em Portugal, que possuía, na época do renascimento, um numeroso elenco de artistas, tanto autores como atores. Entre os autores destacou-se Gil Vicente.

Os jesuítas observaram que nos rituais indígenas, a música e a dança eram extremamente expressivas, ricas em mímicas, um espetáculo da arte de representar. Concluíram, então, que seria uma estratégia pedagógica muito promissora a introdução do teatro como meio de comunicar aos índios a doutrina católica e os valores morais e culturais. Utilizaram o mesmo método já experimentado no ensino da língua e da música (o da "acomodação"), incorporando elementos indígenas retirados da fauna e da etnologia, o que favorecia a aceitação e assegurava o bom desempenho dos atores nativos.

Depois dos primeiros ensaios, realizados da forma mais simples possível, do bom desempenho dos atores (na maioria nativos), partiram para um aperfeiçoamento progressivo, não tardando a realização de duas modalidades teatrais que marcaram a prática teatróloga da Companhia de Jesus: os autos para os colégios e os autos para as aldeias. Essa distinção manifesta que os jesuítas não pretendiam apenas proporcionar diversão aos índios, mas sobretudo instrução religiosa. Como afirma Fernandes: "o teatro jesuítico não podia está divorciado das finalidades da Companhia". Segundo o mesmo autor, "além dos elementos retirados da fauna e da etnologia, os catequizadores buscavam outros na vida dos santos, nos dogmas da Igreja e nas circunstâncias ocasionais que motivavam as representações".

Foi José de Anchieta quem fundou o teatro nacional. Investiu muito tempo em tal tarefa, traduzindo peças ou escrevendo as suas próprias para a catequização dos índios, que atingia não só o objetivo religioso, mas também o moral e o social. Frutos que advinham da acentuada compreensão da relação da arte com a psicologia, da qual o referido sacerdote era portador. Segundo Serafim Leite (2004), O Auto da Pregação Universal (de autoria do Padre José de Anchieta), escrito no Brasil, é o mais antigo e o mais importante do gênero, sendo apresentado em 1567. A riqueza dessa peça caracteriza-se por ter sido escrita em três idiomas: português, castelhano e tupi. Além disso, reflete o contexto social da época e contém curiosas informações etnográficas. Traz também o registro de nomes de localidades e episódios da época pouco documentados.

Apresenta-se em grande parte em língua tupi. Outro ponto relevante é que São Lourenço e até o próprio Valeriano falam o tupi, evidenciando-se a preocupação do autor com o processo da comunicação: o código lingüístico comum aos índios. A mensagem destinava-se a todos. Paula, apresenta um perfil do referido auto, que consta de cinco atos:

"Após a cena do martírio de São Lourenço (padroeiro da aldeia), Guaraxá (rei dos diabos) chama Aimbirié e Saravaia (criados de Guaraxá) para o ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, São Sebastião (padroeiro de São Vicente) os prende. Um anjo manda-os afogarem Décio e Valeriano (imperadores romanos). Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas quando Aimbirié se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os dois imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Amor e o Temor de Deus (personagens que representam virtudes religiosas) aconselham a caridade, contrição e confiança em São Lourenço. Faz o enterro do santo. Meninos índios dançam".

O auto mencionado constitui exemplo emblemático do uso do teatro como estratégia de comunicação pelos jesuítas. É visível o esforço deles em conservar elementos da cultura indígena, como Guaraxá, que representa a força do mal, muito temida pelos nativos. Entretanto, ao mesmo tempo, existe o cuidado em enfatizar a força das virtudes básicas da religião católica, representadas pelos personagens Anjo, Amor e Temor de Deus .

Nas estratégias da catequese jesuítica, percebemos a utilização de um elemento próprio da cultura indígena (o mágico) como estratégia de persuasão. Luiz Beltrão assim comenta tal fenômeno:

"um grande número de teatros dos jesuítas estavam providos de alçapões destinados às aparições de fantasmas e ao desaparecimento súbito dos atores, da mesma forma que máquinas para voar e outras que serviam para se imitar as nuvens. Os dirigientes jesuítas do teatro aproveitavam-se de todas as ocasiões para fazer aparecer as divindades nas nuves, para fazer surgir fantasmas e água em pleno vôo no céu; máquinas que reproduziam o rebõo da trovoada e o sibilar do vento, tornavam ainda mais reais esses efeitos de cena. Os padres conseguiam até meios de representar, com alta perfeição técnica, a passagem do Mar vermelho pelos judeus, bem como inundações, tempestades e outras cenas difíceis no mesmo estilo".

Enfim, como destaca Luiz Beltrão, em seu estudo sobre comunicação no Brasil colonial (2001, p.101),

"a utilização do teatro para a obra de catequese é um exemplo vivo dos métodos de adaptação jesuíticos: tendo lobrigado no palco um admirável   veículo de propagação de doutrinas, de que se estavam aproveitando os protestantes para conquistar as massas, atraídas pela beleza das representações, não hesitaram em desenvolver a atividade teatral simultaneamente com a atividade pedagógica".

O uso de estratégias específicas de comunicação na obra catequética dos jesuítas resulta de um conjunto de fatores que, no início, constituíram obstáculos à evangelização dos missionários. A diversidade de línguas indígenas, a inexistência de estudos sobre elas, os desníveis culturais entre as tribos, a variedade de costumes e ritos - alguns contrariando os princípios do catolicismo, como a antropofagia, a poligamia e o animismo - são alguns desses "obstáculos".

A solução, portanto, foi "mergulhar" no contexto social dos nativos, passando também os mestres por um processo de aprendizagem. Ensinando aos nativos o latim e o português e aprendendo o tupi e o guarani. Quando participavam das festas e dos rituais, observavam com olhos de antropólogos, psicólogos, pedagogos, sociólogos e religiosos e procuravam meios de adequarem a sua práxis às condições dos nativos, resultando na exploração da música, dança e teatro como estratégias de comunicação religiosa e didática para o ensino do latim e do português.

Comentários finais

O estudo sobre as raízes ibéricas que cruzam religião e cultura fazem parte dos interesses analíticos de Gilberto Freyre e de Luiz Beltrão, cada um a seu modo. No primeiro caso, o autor dedica-se a fazer uma interpretação do Brasil, com o intuito de esmiuçar o ethos cultural brasileiro, formado a partir da miscigenação. Beltrão, apesar de manifestar interesse similar, volta-se para uma temática muito específica, no âmbito da relação entre cultura e religião, com um enfoque ainda mais particular, voltado para a compreensão das práticas comunicacionais não hegemônicas, com destaque para as devoções não-canônicas.

Assim, a pedagogia jesuítica tornou-se um dos pontos de convergência entre os estudos de Gilberto Freyre e de Luiz Beltrão. O primeiro dedicou-se a analisar a relevância das raízes e influências culturais dos portugueses e indígenas. Para Gilberto Freyre, esse cruzamento, denominado por ele de "interpenetração cultural" é um dos elementos fundadores da cultura brasileira, miscigenada desde sua origem.

Luiz Beltrão, por sua vez, identifica na pedagogia jesuítica elementos característicos das práticas que inspirariam suas pesquisas sobre folkcomunicação, as quais tiveram na religiosidade popular um dos pilares, com sua tese sobre o ex-voto. Talvez não seja possível atribuir influências diretas dos jesuítas na obra de Gilberto Freyre e de Luiz Beltrão, mas certamente, o conhecimento deles sobre a história cultural do Brasil influenciou a trajetória intelectual de ambos e as escolhas intelectuais que fizeram, o que, sem dúvida pode explicar a convergência analítica aqui esboçada.


Referências

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Antonio Teixeira de Barros
Doutor em Sociologia e Mestre em Comunicação. Professor do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB).

 

 

 

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