México

Inicio

LUIZ BELTRÃO E A IMPORTÂNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE NA FOLKCOMUNICAÇÃO:
UMA CONVERGÊNCIA POSSÍVEL COM A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATICA DE HABERMAS

Por Heitor Costa
Número 60

Resumo

Este artigo aborda o caráter antecipatório da Teoria da Folkcomunicação, de Luiz Beltrão, ao conceder papel privilegiado ao acervo cultural compartilhado pela comunidade de comunicação na legitimação da vida social, considerando a inclusão midiática fator imprescindível ao desenvolvimento da sociedade. Neste sentido, apresenta notável convergência com a preocupação quanto ao papel central da comunicação no processo de transformação social, que viria a ser admiravelmente explicitada por Jürgen Habermas na Teoria da Ação Comunicativa. Esta convergência também se verifica na concepção de Luiz Beltrão da interpretação jornalística, ao lhe atribuir compromisso contrafactual e pós-convencional.

1. O pioneirismo e a atualidade da obra de Luiz Beltrão

A importância da obra de Luiz Beltrão para o estudo da comunicação, de uma maneira geral, e para a teoria do jornalismo, de forma mais específica, tem sido registrada por inúmeros pesquisadores, reconhecendo a sua capacidade de antecipação de várias teorias aceitas de forma consensual nos meios científicos, bem como a sua atualidade, ou seja, sua capacidade de resistir como referência para a construção de conhecimentos aptos a serem considerados válidos intersubjetivamente pela comunidade acadêmica.

Uma novidade na bibliografia brasileira sobre o jornalismo foi a referência feita por Beltrão a uma Teoria do Jornalismo e a uma Teoria da Notícia em 1964, pois, conforme registra Alfredo Vizeu (2007, p. 28), esses termos   "só iriam ganhar força efetiva a partir dos estudos realizados, em particular, nos Estados Unidos e na Inglaterra a partir da década de 1970".

Neste sentido, José Marques de Melo (2006, p. 17) considera Luiz Beltrão o pioneiro das ciências da comunicação no Brasil, ao gerar uma disciplina acadêmica, a Folkcomunicação, que expressa "a cognição da resistência cultural dos contingentes excluídos da sociedade afluente", acumulando um "estoque de saber (...) útil para acelerar a integração da cultura popular com o sistema de comunicação em nosso país".   Para Marques de Melo, a consistência da Folkcomunicação, elaborada por Luiz Beltrão no início da década de 60 e aprovada como a primeira tese de doutorado em comunicação (UNB) em 1966, persiste fortalecida e atualizada "justamente pela permanência, na sociedade de classes, daquelas formas de sentir, pensar e agir dos segmentos economicamente pauperizados, das comunidades situadas na marginalidade cultural ou dos grupos que padecem a segregação política" (MELO, 2006, p. 18).

Segundo Antônio Hohlfeldt (2006, p. 65-66), Luiz Beltrão tem o mérito de pensar a folkcomunicação não simplesmente como uma comunicação alternativa ou de marginalizados, mas como uma comunicação de resistência, pois percebeu que a marginalização midiática não condenava passivamente amplos setores populares. A folkcomunicação deve ser pensada como um conceito ativo uma vez que estes segmentos populares, não se sentindo plenamente atendidos pelos meios de comunicação convencionais, "sobretudo hoje em dia, valem-se deles apenas como uma forma a mais de sua inspiração, criação, qualificação e ampliação de suas próprias estratégias".

Ao atribuir à folkcomunicação a capacidade de auxiliar na compreensão de fenômenos como controle social, socialização ou reintegração social, Hohlfeldt (2006, p. 67) salienta que a teoria de Luiz Beltrão "se coloca na melhor tradição britânica que, a partir de Birmingham, e hoje em dia, na América Latina, com Canclini, Barbero e José Marques de Melo, reivindicam espaço próprio para se estudar, compreender e avaliar processos comunicacionais populares".

Nesta perspectiva, é possível reconhecer como, diante do elitismo da mídia, fez-se necessário não só o desenvolvimento de um processo de tradução dos conteúdos midiáticos pelos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias, mas também de um sistema que integrasse social e culturalmente as massas urbanas e rurais marginalizadas. Assim, Beltrão

comprovou que a imprensa, o rádio, a televisão e o cinema difundem mensagens que não logram a compreensão de vastos continentes populacionais. Esses bolsões "culturalmente marginalizados" reagem de forma nem sempre ostensiva, robustecendo um sistema midiático alternativo. Constroem e acionam veículos artesanais ou canais rústicos, muitas vezes estabelecendo também uma espécie de feedback em relação ao sistema hegemônico (MELO, 2006,   p. 21-22).

O constante desafio de legitimação social vivenciado pela mídia agrava-se diante da necessidade da indústria cultural de conquistar o mercado dos segmentos sociais cuja descapitalização cultural impossibilita uma adequada decodificação dos conteúdos midiáticos. Daí a necessidade da indústria cultural "retroalimentar-se continuamente na cultura popular" (MELO, 2006, p. 23). Desta maneira, Marques Melo vê Beltrão antecipando observações empíricas que seriam posteriormente aprofundadas e contextualizadas pela teoria das mediações culturais de Jesus Martin-Barbero.

Com relação ao processo de tradução dos conteúdos midiáticos aos setores excluídos culturalmente, Melo (2006, p. 24) identifica a referência feita por Beltrão ao paradigma do Two-step-flow-of-communication , de Paul Lazarsfeld e Elihu Katz, salientando que estes cientistas atribuíram um caráter linear e individualista ao fluxo comunicacional em duas etapas, uma vez que dependia da ação persuasiva dos líderes de opinião, enquanto

o pesquisador brasileiro teve a premonição de que o fenômeno era mais complexo. Comporta uma interação bi-polar (pois inclui o "feed-back" protagonizado pelos agentes populares no contato com os meios massivos) e revela natureza eminentemente coletiva. A re-interpretação das mensagens não se faz apenas em função da leitura individual e diferenciada das lideranças comunitárias. Mesmo sintonizada com as normas de conduta do grupo social, ela traduz o forte sentido da coesão grupal.

É a partir desta perspicaz observação de José Marques de Melo que se evidencia outra "premonição" importantíssima de Luiz Beltrão, desta feita com a teoria da ação comunicativa desenvolvida por Jürgen Habermas em meados da década de 70, tendo a teoria interacionista simbólico da estrutura de sentido compartilhada como base para elaboração da intersubjetividade como conceito-chave da sua concepção de razão comunicativa.

Desta maneira, Luiz Beltrão parece concordar com Habermas, na sua defesa do sentido como conceito sociológico básico, da ética do discurso como procedimento indispensável ao consenso e, por conseguinte, à estabilidade social, e de sua crítica à comunicação sistematicamente distorcida como o elemento central e estratégico da engenharia ideológica da racionalidade sistêmica para colonização do mundo da vida, que alimenta os potenciais de conflito e violência característicos da crise de legitimação que a anomia representa à sociedade midiatizada contemporânea.

Ao distinguir a colonização horizontal, decorrente da expansão econômica em procura de mercados, da colonização vertical que atualmente "coloniza e conquista os espíritos", Luiz Beltrão (1986, p. 202) destaca que, na atualidade, "o controle difuso da informação implica na coisificação e na manipulação da mensagem e, bem assim, na perda da hegemonia da intelligentsia na condução do processo cultural".

No final de seu último trabalho, Beltrão (1986, p. 211) argumenta contra a racionalidade técnica/sistêmica, enumerando três conclusões:

  1. Há, felizmente, na nossa sociedade de massa, certas coisas que não podem ser quantificadas mas mesmo que o fossem jamais poderiam ser expressas em moeda corrente: tais são a vida, a incolumidade física, a boa reputação, a liberdade.
  2. O direito à informação e o direito de expressão estão também entre estes. Não são assuntos que interessam apenas ao leitor-radiouvinte-telespectador-fruidor-receptor; são também direitos impostergáveis do autor, do editor, do advogado, do professor, do intelectual e do artista-criador, isto é, de todos quantos têm o dever social de informar e de expressar-se livremente.
  3. O cordão virtual que prende aos foros de Humanidade e de Civilização não pode ser impunemente rompido: com o esprit de géométrie , de que nos fala Pascal, pode-se talvez construir maravilhas tecnológicas e fabricar a bomba atômica mas somente com o esprit de finesse podem ser levadas em consideração certas variáveis essencialmente humanas e dirigir, com acerto, a sociedade em que vivemos, sem o pesadelo de um povir de automação brutal e generalizada.

Na análise da semiótica de Charles Sanders Peirce, Luiz Beltrão (1986, p. 46) refere-se à ampliação que o pensador pragmatista faz ao modelo de comunicação, que anteriormente só distinguia emissor, mensagem e receptor, e se restringia a uma visão monológica, ao acrescentar o interpretante, mas não identifica, como José Marques de Melo, citado acima, a coincidência dessa abordagem com a sua ênfase na importância do acervo cultural da comunidade de comunicação, a "natureza eminentemente coletiva" da comunicação e a capacidade da re-interpretação das mensagens de traduzir o "forte sentido da coesão grupal".

No entanto, se na sua premonição o pensador brasileiro não percebeu a importância teórica do modelo semiótico de Peirce, a sua aplicação do modelo de dois fluxos da comunicação ao caso brasileiro vai contemplar o caráter coletivo e a necessidade de legitimação e interação social da comunidade de comunicação:

Constatadas a importância do líder de opinião em qualquer operação de mudança e a ineficiência presente dos meios convencionais de comunicação para promover a interação social, a pesquisa deve voltar-se para a identificação do processo comunicativo e dos agentes e instrumentos eficazes para reunificar o pensamento e harmonizar a atividade dos diversos grupos, com vistas ao desenvolvimento cultural e econômico (BELTRÃO, 2001, p. 67).

A intensa distorção sistemática da comunicação no Brasil é vista por Beltrão (2006, p. 69) como decorrente da "estrutura social discriminatória mantida em nações como a nossa", que faz com que "a massa camponesa, as populações marginais urbanas e até mesmo extensas áreas proletárias se comuniquem através de um vocabulário escasso e organizado dentro de grupos de significados funcionais próprios".

Assim, para ele, competia aos pesquisadores entender as crenças e os "catimbós" dos grupos marginalizados para perceber neles os elementos de "caráter e conteúdo jornalístico", que possam se constituir em "veículos adequados à promoção de mudança social".

Se a comunicação jornalística era essencial à formação das crenças e das decisões que impulsionam os indivíduos e as sociedades à ação, evidentemente aqueles catimbós tinham de ser veículos jornalísticos. E o processo de atualização, reinterpretação e readaptação dos modos de pensar e agir dessa massa surda às mensagens da imprensa, do rádio, da TV e do cinema, haveria, igualmente, de identificar-se com o processo jornalístico, produzindo efeito mediante métodos e técnicas semelhantes. Ou estaria eu inteiramente errado em tudo quanto verificara e concluira antes ou iria encontrar conteúdo jornalístico em atividades alheias, e até fundamentalmente dessemelhantes, à atividade jornalística. Iria flagrar agentes-comunicadores de fato em indivíduos que se surpreenderiam se lhes fosse dito que eram jornalistas. Encontraria a explosão da opinião pública em palavras e atos aparentemente vazios ou inócuos de sentido reivindicatório. Editorialistas vibrantes em iletrados e analfabetos. Editores sagazes em pobres diabos sem tostão e sem empresa (BELTRÃO, 2001, p. 75).

A correspondência do pensamento de Beltrão (2001, p. 259) com o de Habermas   também se evidencia na identificação da comunicação como o problema fundamental da sociedade contemporânea, cujo ritmo classifica como "supersônico", pois "as revoluções se estão fazendo por décadas e não por séculos e têm seu suporte na tecnologia e na comunicação, juntas, de mãos dadas para reformar a face da terra e conferir novos padrões de vida à humanidade".

Assim, o compromisso ético de Beltrão com a inclusão social pode sem dificuldade ser interpretado como correspondente ao princípio do discurso - o acesso generalizado à discussão -, bem como sua preocupação com a integração e legitimação social através da comunicação como algo inserido no princípio da universalização - que os resultados da discussão possam ser reconhecidos como válidos por todos os integrantes da comunidade de comunicação de maneira aproximativa com o ideal da validade universal - princípios que constituem o conceito da ética do discurso de Habermas.

Desta maneira, pode-se vislumbrar o aprofundamento da fundamentação teórica do conceito de comunicação de Luiz Beltrão, que implica um estatuto maior do que o de mero instrumento de satisfação das necessidades particulares dos indivíduos, como o pressupunha a racionalidade instrumental e estratégica/sistêmica, a partir da perspectiva intersubjetiva da racionalidade comunicativa concebida por Habermas.

2 A intersubjetividade e a teoria da ação comunicativa

O desenvolvimento do conceito de intersubjetividade vai se constituir na base com que Habermas elabora a racionalidade comunicativa, distinguindo o nexo, aparentemente paradoxal, existente entre a individuação progressiva propiciada pela secularização característica da modernidade com a constante busca da validade universal como fator de legitimação do estado de direito democrático.

A fundamentação teórica para isso o pensador alemão encontra na psicologia social de George H. Mead, que coloca a diferenciação da estrutura de papéis em contato com a formação da consciência e com a obtenção da autonomia de indivíduos que são socializados em situações cada vez mais diferenciadas. Neste sentido, a individuação pode ser entendida como resultante da

internalização das instâncias controladoras do comportamento que de certo modo imigram de fora para dentro. Na medida em que o sujeito que cresce através do processo de socialização e incorpora inicialmente aquilo que as pessoas de referência esperam dele, passando em seguida a integrar e a generalizar, através da abstração, as expectativas múltiplas, inclusive as contraditórias, surge um centro interior de auto-comando do comportamento, imputável individualmente (HABERMAS, 1990, p. 185-186).

Assim, a concepção de Mead tem o mérito de representar a individuação não como a auto-realização de um sujeito auto-ativo na liberdade e na solidão, como concebia a filosofia da consciência do sujeito e o mentalismo, mas como um processo lingüisticamente mediado da socialização e, ao mesmo tempo, da constituição de uma história de vida consciente de si mesma. Nessa concepção, a identidade dos indivíduos socializados forma-se simultaneamente, como troca, no meio do entendimento lingüístico com outros e no meio do entendimento consigo mesmo (intra-subjetivo). Portanto, a formação da individualidade passa a ser vista como se dando em condições de reconhecimento intersubjetivo e de auto-entendimento mediado intersubjetivamente.

Para Habermas (1990, p. 187)

A inovação decisiva em relação à filosofia do sujeito tornou-se possível também nessa direção, graças a uma guinada lingüística pragmático-formal, a qual atribui a primazia à linguagem que explora o mundo - tida como o meio do possível entendimento, da cooperação social e dos processos de aprendizagem auto-controlados - e não à subjetividade criadora de mundos. Tal guinada coloca-nos nas mãos os meios conceituais básicos que nos permitem recuperar uma intuição há muito tempo tematizada no discurso religioso. A partir da estrutura da linguagem é possível esclarecer por que o espírito humano está condenado à Odisséia - por que ele não consegue encontrar-se a si mesmo a não ser através de um desvio que passa pela alienação, pela entrega completa a outros e a outras realidades. Ele só se torna consciente de si mesmo na singularidade insubstituível e sem par de um ser individuado quando se encontra na maior distância em relação a si mesmo.

Na guinada lingüística pragmático-formal, George Mead é o primeiro a tomar no processo comunicativo o enfoque performativo da primeira pessoa em relação à segunda - saliente-se, numa relação simétrica - como chave para a sua crítica ao modelo do espelho, isto é, à auto-relação do sujeito que se objetiva a si mesmo. Assim, Mead foi o primeiro a refletir sobre o modelo intersubjetivo do Eu produzido socialmente, descartando o modelo da reflexão da autoconsciência, no qual o sujeito cognoscente referia-se a si mesmo como um objeto com o intuito de apoderar-se de si mesmo e, com isso, tornar-se consciente de si mesmo.

Segundo Habermas (1990, p. 205), a concepção com que Mead rompe o círculo da reflexão auto-objetivadora acarreta a passagem para o paradigma da interação mediada simbolicamente, pois enquanto a subjetividade é entendida como um espaço interior de representações próprias a cada um, disponível quando "o sujeito representador de objetos voltar-se, como num espelho, sobre sua atividade de representação, tudo o que é subjetivo só é acessível na forma de objetos da auto-observação ou da instropecção".

O esclarecimento do modo como se desenvolve o processo de solução de problemas e o surgimento da vida consciente é alcançado por Mead ao abandonar o modelo de relação instrumental de um ator isolado com coisas e acontecimentos, adotando o modelo da relação interativa de vários atores entre si. A idéia de reconhecer-se no outro conduz o fio da explicação de Mead sobre a forma elementar com que a auto-referência torna-se possível através da interpretação de um outro participante da interação.

Desta maneira, Habermas (1990, p. 211-212) assegura que a autoconsciência não habita no sujeito, nem está à sua disposição, uma vez que é gerada comunicativamente:

Até agora se falou da auto-relação epistêmica do sujeito consigo mesmo, isto é, do sujeito solucionador de problemas. A guinada em direção a um modo de ver intersubjetivista nos leva ao seguinte resultado, surpreendente no que respeita à intersubjetividade: a consciência que parece estar centrada no Eu não é imediata ou simplesmente interior. Ao contrário, a autoconsciência forma-se através da relação simbolicamente mediada para dentro. Nesta medida, a autoconsciência possui um núcleo intersubjetivo; sua posição excêntrica testemunha a dependência contínua da subjetividade face à linguagem, que é o meio através do qual alguém se reconhece no outro de modo não objetivador .

A vida civilizada pressupõe a superação da ação de coordenação que era anteriormente assegurada através de um repertório comum de instintos por expectativas de comportamento generalizadas normativamente, o que implica numa certa internalização no sujeito de controles sociais. A correspondência entre instituições sociais e controles do comportamento no sistema de personalidade é explicado por Mead através do mecanismo de assunção da perspectiva de um outro, o qual assume com relação a Ego - numa referência de interação - um enfoque performativo, o que amplia a assunção de perspectivas, que passa a ser assunção de papéis. Nesse momento, não são assumidas por Ego as expectativas cognitivas, mas sim as expectativas normativas de Alter. O processo, no entanto, "conserva a mesma estrutura. Pelo fato de eu me apreender como um objeto social de um outro, forma-se novamente uma instância reflexiva, através da qual Ego apropria-se de expectativas de comportamento de outros" (HABERMAS, 1990, p. 213). Assim, a tarefa específica de mobilização de motivos de ação e de controle interior dos próprios modos de comportamento é assumido pela auto-reflexão.

Não sendo mais a sede de uma auto-consciência originária ou refletida, o "Me" da auto-relação prática é interpretado por Mead como o " generalized other" (o outro generalizado), isto é, como as expectativas de comportamento do ambiente social, generalizadas normativamente, que de certa forma imigram para o interior da pessoa. Segundo Mead (1992, p. 154), "a comunidade organizada ou grupo social que dá ao individual sua unidade de self pode ser chamada de o outro generalizado".

O sujeito agente, na auto-relação prática, não quer conhecer, mas certificar-se como vontade livre, como iniciador de uma ação que só pode ser imputada a ele.

Deste modo, é plausível empreender essa certificação na perspectiva daquela vontade coletiva ou generalizada que nós encontramos de certa forma já incorporada nas normas reconhecidas e exercitadas intersubjetivamente e nas formas de vida de nossa sociedade. Somente na medida em que crescemos no interior desse ambiente social, poderemos constituir-nos como indivíduos capazes de agir de maneira responsável e desenvolver - pelo caminho da internalização dos controles sociais - a capacidade de seguir por conta própria as expectativas tidas como legítimas ou de ir contra elas (HABERMAS, 1990, p. 215).          

Na avaliação moral que exercitamos ao censurar nossas idéias e pensamentos, bem como a afirmação das regras e princípios de nossa comunidade de comunicação, assumimos o enfoque generalizado do grupo como consciência moral vinculada às convenções e práticas de um grupo particular. Nas sociedades tradicionais, o indivíduo estava mais preso a formas de vida estandardizadas pela tradição. Por isso, o progresso da individuação é visto como processo de civilização da sociedade, uma vez que a participação do sujeito passa a ser caracterizada mais pela recusa ou pela vivência modificada dos tipos sociais.

Uma vez que se articula uma identidade-eu através de uma pretensão incondicionada de singularidade e de insubstituibilidade, a qual não se prende mais exclusivamente ao 'tipo social', sendo, pois, pós-convencional, também desta vez entra em jogo um momento da idealização. Esse momento não se refere somente ao círculo virtual que abrange todos os destinatários, a comunidade ilimitada de comunicação, mas à própria pretensão de individualidade; ele diz respeito à garantia que eu assumo conscientemente em relação à continuidade de minha história de vida, a luz de um projeto de vida individual e refletido. A suposição idealizadora de uma forma de vida universalista, onde cada um pode assumir a perspectiva de cada um dos outros e onde cada um pode contar com o reconhecimento recíproco por parte de todos, torna possível a socialização de seres individualizados - o individualismo como o outro lado da medalha do universalismo (HABERMAS, 1990, p. 220).

3. Luiz Beltrão e a mudança social  

Assim, estas reflexões têm a propriedade de enfatizar o caráter social e intersubjetivo do processo de construção de sentido público e salientar a denúncia da distorção ideológica que é a exclusão da discussão pública de amplos setores marginalizados nos campos e nas cidades, como destacava Beltrão. No mesmo sentido, o modelo habermasiano deve ser reconhecido pelo mérito de oferecer uma descrição consistente não só da reprodução da realidade, com a preservação da ordem institucional estabelecida, através da instrumentalização dos meios de controle poder e dinheiro pela racionalidade sistêmica (coação de pressões externas que caracterizam a facticidade), mas também da mudança social, indicando as condições pragmáticas universais necessárias à construção de consensos autênticos, que podem proporcionar integrações sociais verdadeiras, legitimadas pelo consentimento racionalmente motivado dos cidadãos (validade).

Também o compromisso de Luiz Beltrão com um jornalismo pós-convencional e sintonizado com as aspirações contrafactuais está muito claro na descrição feita sobre a interpretação jornalística no seu livro de estréia "Iniciação à filosofia do jornalismo", quando defende que, "se o jornalismo abrange o que ocorreu e o que poderia ocorrer, o que se pensou e o que (até não se pensou, mas) se poderá pensar, nem sempre se constitui um relato puro e simples, mas se reveste, igualmente, do aspecto de uma exposição interpretada" (BELTRÃO, 1992, p. 79).

Só, assim, com um jornalismo que vá além do factual e atinja uma perspectiva pós-convencional, poder-se-á reverter a tendência alimentada pela naturalização à retração de sentido (anomia), que caracteriza a colonização do mundo da vida, através da ampliação do consenso intersubjetivamente compartilhado, requisito imprescindível para um convívio social mais justo e democrático.    


Referências

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

____________. Subsídios para uma teoria da comunicação de massa. São Paulo: Summus Editorial, 1986.

____________. Iniciação à filosofia do jornalismo . São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

MEAD, George Harbert. Mind, self and society. Chicago (EUA): The University of Chicago Press, 1992.

MELO, José Marques de. De volta ao futuro: da Folkcomunicação à folkmídia. In: SCHMIDFT, Cristina (Org.). Folkcomunicaçãio na arena global . São Paulo: Ductor, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Conciencia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

___________. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

_________. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Madrid: Ediciones Cátedra, 2001.

HOHLFELDT, Antonio. Folkcomunicação: positivo oportunismo de quase meio século. In: SCHMIDT, Cristina. Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodologias. São Paulo: Ductor, 2006.

VIZEU, Alfredo. Beltrão, os estudos e as teorias do jornalismo. Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v. 30, n. I, janeiro/junho 2007.

Heitor Costa Lima da Rocha
Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP; mestre em Ciência Política, em 1989; e doutor em Sociologia, em 2004, ambos os graus obtidos na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

© Derechos Reservados 1996- 2007
Razón y Palabra es una publicación electrónica editada por el
Proyecto Internet del ITESM Campus Estado de México.