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“A ÁRVORE DO DINHEIRO”: UMA NARRATIVA MITOLÓGICA NORDESTINA

Por Mayra Cristine de Melo y Meiriédna Queiroz
Número 60

Resumo:
Este estudo pretende analisar a utilização da xilogravura em novos suportes destacando o vídeo de animação – “A Árvore do Dinheiro” - além da recorrência de personagens arquetípicos nas narrativas populares nordestinas, com foco na figura mitológica do Diabo. Esta produção simbólica é resultado da hibridização do popular e do tradicional representado pela xilogravura de sua forma, uso e essência na animação - suporte contemporâneo. Percebe-se nesta abordagem a tendência à propagação do Nordeste imaginário através dos mídia e dos seus agentes comunicacionais, num novo paradigma não maniqueísta.

Introdução

A sociedade contemporânea construiu um indivíduo diferenciado em suas atitudes e nas suas formas de consumo. Este consumidor, exigente e cada vez mais pulverizado, é atraído por mídias diversas que buscam encontrar pontos de contato. Estes pontos podem ser identificados a partir dos valores culturais presentes no cotidiano, história, profissão, família, religião, entre outros grupos os quais cada um faz parte. John B. Thompson (1998:19) acredita que a concepção estrutural está no seu produto que são as formas simbólicas.

Na contemporaneidade, não é mais permitida ao homem, mas sim a fragmentação. Assim, os elementos formadores da cultura nacional – históricos, sociais, econômicos e culturais – condicionam uma produção cultural híbrida que neste artigo é observada a partir do olhar sobre o vídeo de animação “A Árvore do Dinheiro”. Tal vídeo é uma produção pernambucana e se baseia esteticamente na técnica da xilogravura e na narrativa contada através de versos em sextilhas.

Esta análise foi feita a partir do método sugerido por Thompson, em seu livro Ideologia e Cultura Moderna, intitulada hermenêutica de profundidade (HP) a qual “coloca em evidência o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa que exige uma interpretação” (1995:355). Este método tem três fases de enfoque, a primeira descrita como análise sócio-histórica, a segunda análise formal e a terceira interpretação/reinterpretação. Na primeira fase pretende-se referenciar o objeto na realidade espacial global, a seguir analisar a narração, seguindo sua interpretação e reinterpretação conclusivas.

Dentro do aspecto hermenêutico, a tradição seria uma estrutura mental para entender o mundo, um conjunto de pressupostos de fundo, que são aceitos pelos indivíduos ao se conduzirem na vida cotidiana e transmitidos por eles de geração em geração, não se caracterizando como um guia.

O aspecto normativo da tradição está relacionado às práticas rotineiras – realizadas sem muita reflexão, pela repetição das gerações. No caso da xilogravura, a técnica da gravura em madeira é passada de pai para filho no nordeste pernambucano. A ação e a sua justificativa estão calcadas na relação auto-reflexiva da tradição normativa que estabelece a credibilidade e a legitimidade de um comportamento tradicional.

Já o moderno se constitui através da consolidação do consumo e da cultura de massa. O modernismo seria uma relação entre o que era a alta arte européia e a cultura de massa em meados do século XIX, não necessariamente uma evolução da arte por si só. No caso do objeto empírico aqui analisado - um vídeo de animação. A modernidade se apresenta na forma de construção deste, a partir de tecnologia advinda de softwares relativos à linguagem audiovisual da animação.

Thompson (1995) acredita que a tradição sobrevive à modernidade. Sua idéia é que a mídia pode reviver a tradição, ou melhor, a tradição pode-se utilizar dos meios modernos de fixação e reprodução de mensagens através de sua tecnologia para não perder as idéias tradicionais de relacionamento e vida social.

Para Renato Ortiz (2001), passado e futuro se encaixam, e não excluem o que pode surgir desse cruzamento. Para ele o Brasil vive este momento, uma espécie de conjunto de instituições e valores que, mesmo sendo produtos de uma história recente, se impõe às pessoas como uma moderna tradição.

A questão modernidade versus tradição se mantém no impasse de que as pessoas vivem uma modernidade de tempo histórico, mas podem viver conceitos e valores de outro tempo. A mídia permite que o resgate aconteça por meio de sua capacidade de manutenção, repetição, deslocamento de tempo-espaço, fazendo com que valores tradicionais sejam consolidados e expandidos na modernidade.

Como explica Nestor Garcia-Canclini, é necessário acabar com essa antiga divisão e constatar sua hibridação, sendo lida de outra forma através das disciplinas como: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva (1998:19).

O que vai ser relatado a seguir são as formas tradicionais e populares que através de suas imagens simbólicas e, muitas vezes, imaginárias construíram um Nordeste brasileiro, um pedaço sem espaço físico e sem tempo cronológico, mas com um tempo e espaço imaginários.

Para a melhor compreensão da linha de análise desenvolvida, alguns aspectos abordados pela literatura devem ser comentados. São eles: conceitos relacionados ao real e ao imaginário, o Nordeste imaginário, a xilogravura e as narrativas populares permeadas de personagens arquetípicos.

Do Real ao Imaginário

Antes de iniciar o estudo dos elementos reais e imaginários presentes na produção simbólica comunicacional contemporânea é necessário entender primeiramente o que é o real e o que é o imaginário.

Segundo Laplantine e Trindade (1997:12) “o real é a interpretação que os homens atribuem à realidade. O real existe a partir das idéias, dos signos e dos símbolos que são atribuídos à realidade percebida”. Já o imaginário para Durand (2002) é o processo cognitivo no qual a afetividade está contida, traduzindo uma forma específica de perceber o mundo, de alterar a ordem da realidade, onde seu compromisso é com o real e não com a realidade. Constitui-se da relação entre o sujeito e o objeto, que vai desde o real, que aparece ao sujeito em forma de imagens, até a possível representação deste real.

Ainda segundo Laplantine e Trindade (1997: 23), “o imaginário [...] utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, e por sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária”. Assim, a cristianização da cultura européia traz consigo um momento ímpar para a história do imaginário. Sua abordagem maniqueísta acentuada vai balizar comportamentos e condutas cotidianas, explicando a realidade e suas desventuras e estabelecendo padrões de boa convivência que regulamentam a coletividade. No imaginário mágico-religioso, portanto, a oposição fundamental à moral dominante é a força rebelde constituída pela entidade malígna – o Diabo, de acordo com Carlos Roberto F. Nogueira (2000).

No caso do Nordeste, esta dicotomia entre o Bem e o Mal; Deus e Diabo - toma nova forma denominada por Nogueira, como “mutação tropical” (idem, 2000:67), por conta da fusão de culturas ocorrida com a colonização. Para os indígenas, esta figura era ausente, do mesmo modo que nos cultos africanos, onde não são identificadas entidades opositoras, no sentido formal, entre o Bem e o Mal.

Neste cenário, o Diabo acaba perdendo os atributos de maligno que o caracterizavam na Europa e ganha um novo status, o da malícia, fornecendo os meios de burlar e, consequentemente, enfrentar e subverter o poder, em todas as suas esferas.

Encarnando o sistema de exploração e considerado como produto direto do patriarcalismo, o Diabo marca as narrativas nordestinas através das atitudes de desvalorização da figura feminina, em detrimento da dominação masculina exclusiva e absoluta. Mas, a reação popular advinda dos contextos de submissão religiosa e econômica revela uma faceta irreverente no tratamento e reinvenções deste mito.

Esta relação entre real e imaginário, permeia as narrativas que podem ser analisadas através do tronco comum dos contos maravilhosos e seus mitos. Estas construções, em sua maioria advindas da oralidade - ouvidas tradicionalmente através do relato dos cantadores de cordéis, contadores de “causos” ou dentro de seu círculo familiar - vão contribuir para a formação das imagens simbólicas e da “sensibilidade” que norteiam o comportamento do homem no mundo real, tangível.

Da Narrativa Mitológica ao Nordeste Imaginário

As narrativas mitológicas têm como ponto de partida os comportamentos arquetípicos que caracterizam seus personagens, imortalizando-os e fazendo-os transcender através dos tempos.

O Léxico dos Conceitos Junguianos Fundamentais, livro organizado por Helmut Hark, conceitua arquétipos sendo “formas e imagens de natureza coletiva que ocorrem em praticamente toda a Terra como componentes de mitos e, ao mesmo tempo, como produtos individuais de origem inconsciente” (2000:21).

Considerando a concepção junguiana, há na alma humana uma profunda necessidade voltada para as noções e as imagens míticas (Hark, 2000: 84). Os mitos são, pois, narrativas primordiais que formam um universo atravessado por lendas, parábolas, apólogos, símbolos, arquétipos que mostram as fronteiras em que vivem os seres humanos, entre o conhecido e o misterioso, entre o consciente e o inconsciente (Coelho: 89).

O pensamento mítico nasceu como uma das primeiras manifestações do que seria mais tarde o pensamento religioso, isto é, a consciência do homem em face de um princípio superior absoluto, que o explica e o justifica.

Em sua insaciável necessidade de conhecimento, o homem vem tentando entender o mundo e seus nuances intangíveis através da ciência, do mito e da história. Assim, os romances históricos representam estereótipos herdados do passado e se transformam em história popular.

Esta história popular traduzida para a narrativa áudio-visual procura refletir os valores, o estilo de vida, a sensibilidade e a cultura na qual o interlocutor está imerso, em busca da identificação destes gerando vínculos emocionais forjados através da utilização de personagens arquetípicos, como afirma Randazzo (1996).

A recorrência de histórias mitológicas no imaginário popular segundo Joseph Campbell, “reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir (...)” (1989: 15).

A literatura popular do Nordeste, de acordo com Leda Ribeiro, pode ser considerada herdeira direta do cantar dos poetas medievais europeus (1986:76), os quais construíam seus mitos que tendo sido sacralizados, passam a ser reconhecidos e difundidos entre os homens através dos tempos.

Na narrativa “A Árvore do Dinheiro”, objeto de reflexão deste artigo, observa-se a presença de arquétipos característicos da tipologia criada por Christopher Vogler (2006), construída com base nas postulações de Campbell (1989), assim como se destacam as etapas da jornada do herói. A tipologia criada por Vogler elenca os seguintes arquétipos: o herói, o mentor, o guardião de limiar, o arauto, o camaleão, o sombra e o pícaro. Além destes, Victor Manoel de Aguiar e Silva (1999), cita os arquétipos: aliados, príncipe/ princesa.

Nos percausos vividos pelo herói em sua jornada também podem ser apontadas etapas. Vogler (2006) comenta sobre: Mundo comum; Chamado à aventura; Recusa do chamado; Encontro com mentor; Travessia do primeiro limiar; Testes, aliados e inimigos; Aproximação da caverna oculta; Provação; Recompensa; Caminho de volta; Ressurreição e Retorno com o elixir.

Tais arquétipos e etapas serão identificadas na narrativa “A Árvore do Dinheiro”, que conta a história de um rapaz chamado José, protagonista e herói que busca e conquista seu objetivo, casar com Maria, submetendo-se às conseqüências acarretadas por um pacto realizado com um “estranho” – o Diabo. Este evento irá provocar, posteriormente, a derradeira separação de José e Maria, esta última, personagem deuteragonista, objeto de desejo afetivo do herói (princesa) que acaba desventurada e sem marido.

Do Nordeste Imaginário à Xilogravura

O Nordeste, segundo Durval de Albuquerque (2001), enquanto uma construção imagético-discursiva, é um retrato fantasioso de um lugar que não existe, uma fábula espacial. Para o escritor tradicionalista José Lins do Rego, o Nordeste é “um espaço melancólico e cheio de sombras; um espaço de saudades” ; para o poeta Jorge de Lima teria a “alma negra, mística, espiritual e oprimida, em busca da redenção em Deus” ; para Luiz Gonzaga o “espaço fixo da saudade” (Albuquerque, 2001: 82-84).

Começa-se a construir o Nordeste com base na tradição. Gilberto Freyre traça a invasão holandesa no Nordeste como diferenciação para a região. A idéia do popular, a idealização deste e o folclore seriam elementos de integração do povo nesse todo regional.

O moderno, para os nordestinos, ficou espremido entre o pensamento conservador e a questão nacional, tal como ele havia sido posto, foi assumido como um valor em si, sem ser questionado. Tornando-se sinônimo de rural e de manifestações folclóricas, um mundo primitivo. Quando o tema é a cidade, sempre é a cidade antiga, não a moderna com suas mazelas. O Nordeste seria dos homens tranqüilos com suas vidas pacatas, tementes a Deus e que também não arredavam de uma guerra de destino, de honra.

O Nordeste seria o espaço do mando dos donos de engenho, do fogo morto das usinas, das assombrações, dos vaqueiros do sertão, mítico do cordel. O falar nordestino começa também a ser institucionalizado através do camponês pobre e mudo, do cangaceiro da infância, do coronel que dava ordem em cima do cavalo. Esta fase é marcada por elementos mortos na realidade e vivos apenas na memória dos artistas.

Estes estereótipos têm dado frutos no campo da produção simbólica dentro de comunicação. O estereótipo do pobre esperto, do sertanejo valente, do cancioneiro popular e das figuras nordestinas tem sido o berço para narrativas populares como: filmes, novelas, minisséries, livros, literatura de cordel, e, neste caso, mote para um vídeo de animação.

Percebe-se também que o uso do cordel e da xilogravura vem se ampliando para as produções em comunicação contemporâneas. A xilogravura, a arte da gravação em madeira com o resultado de sua estampagem sobre papel ou outro material permitiu no tempo de seu surgimento - China século V e VI - segundo Herskovits (1986) que barateasse a impressão de livros, voltados para a religiosidade e para o divertimento.

A xilogravura no Brasil foi muito utilizada para ilustrações de papéis comerciais, na publicidade, em anúncios e além da produção de cartas de baralho. Desenvolveu-se paralelamente a outros processos de impressão, como a produção de clichês em metal, muito utilizada para a confecção dos folhetos de cordel. No Nordeste, a xilogravura manteve sua tradição com as ilustrações das capas dos cordéis, onde a gravura retrata, numa síntese, a história contada nos folhetos.

Os xilogravadores nordestinos utilizam à técnica de maneira forte e marcante, criando um estilo onde os personagens retratados possuem formas, algumas vezes irreais, e apesar de apresentarem contornos irregulares e pouco definidos, estes elementos ganham força e fazem parte do imaginário que cerca os temas que são retratados tanto nos cordéis quanto nas xilogravuras produzidas por esses artistas.

As imagens em xilogravura ‘saltaram' do suporte tradicional, as capas dos folhetos, e passaram a ser utilizadas em outros meios, livres da narrativa e sem nenhuma relação com o poema da literatura do cordel. “Os intelectuais que se debruçam no estudo da xilogravura de cordel são unânimes em apontá-la [a nova linguagem] como expressão autêntica do imaginário popular (...)”, afirma Hata (1999:80).

Apesar dos diversos temas encontrados, é possível perceber a presença de um estilo representativo de pessoas de uma determinada região. Seja no traço, no desenho sem perspectiva e sem volume, seja nos seres imaginários ou mesmo na forma ingênua de representar seus personagens.

Em sua maioria, os desenhos da xilogravura popular são encontrados em preto e branco reforçando ainda mais o uso do contraste entre as áreas de grafismo (áreas impressas) e contra-grafismo (áreas que não são impressas).

Os temas recorrentes nos mostram como os artistas populares trabalham elementos da vida cotidiana (elementos reais) como o homem, a mulher, a fauna, a flora, os objetos do dia-a-dia e, também, elementos imaginários ou inventados, como a mulher sereia e o diabo.

A partir desta perspectiva, a construção imagética se reproduz através de histórias que o xilogravurista já mantém em sua memória, narrativas fantásticas que compõem o nordeste imaginário.

Da Xilogravura para a Animação: a Narrativa da Árvore do Dinheiro

A narrativa a seguiré1 contada através de versos em sextilha e imagens animadas a partir da técnica da xilogravura.

“Há muito tempo atrás
No sertão nordestino
Um cabra de nome José
Se apaixonou feito menino
Por Maria filha de um coroné
De nome chamado Agripino

Maria e José às escondidas
Viviam num chamego arretado
Mas depois da missa no fim do dia
A menina com o coração apertado
Disse a triste notícia:
Seu destino já estava traçado

Seu pai já a tinha encomendado
Para Bento, filho do cumpade da região
Ao saber José subiu o morro até a beirada
E rezando com muita devoção
Disse que faria qualquer coisa
Para ter muito dinheiro na mão

José tinha decidido pular
Quando um homem de capuz e manto se aproximou
Dizendo que o podia ajudar
José prontamente em voz alta retrucou
Quem ele era?
Aonde queria chegar?

O homem misterioso explicou:
Sou apenas um amigo
E vim te socorrer
Plante essa semente na noite de lua cheia
E no outro dia você vai ver
Riquezas e prosperidades dinheiro para dar e vender

Chegou o dia da lua cheia
E José fez o que o estranho pediu
Plantou a semente no local
Onde o acesso ninguém nunca viu
No outro dia foi verificar
A pequena árvore que surgiu

No lugar das flores e dos frutos
A árvore deu muito dinheiro
José começou a colher tudo
E deixou os bolsos cheios
E correndo à cidade comprou
Roupa boa e água de cheiro

Em um mês Maria se casou
Não com o Bento, filho do cumpade
E sim com quem sempre amou
José, agora com terra pela cidade
Um cabra rico se transformou
Com muito poder e prosperidade

José se transformou no mais rico do sertão
Suas terras eram tão extensas
Que se perdiam da visão
E com um arame de espessura densa
Restringiu o acesso da população
A árvore que cuidava com tanta veemência

Eles tiveram filhos
E foram felizes assim por muito tempo
Dinheiro, poder e muito brilho
Nada melhor para o seu contentamento
Mais um dia a árvore morta amanheceu
E José se espantou com o acontecimento

Já tendo tudo que queria
Resolveu tocar a vida
Sem muita preocupação
Porém, José não sabia da real situação
Foi quando um barulho forte à sua porta
Chamou sua atenção

José pegou sua espingarda
E se dirigiu até o portão
Quando avistou o encapuzado
Que tinha oferecido a semente da salvação
E perguntou ao desgraçado
O que ele queria então

O homem veio cobrar a dívida
E José indagando irado com a questão
Parou quando o cabra tirou o capuz e disse:
Sua alma é a negociação
José assustado deu um passo atrás e percebeu
Que se tratava do próprio Satanás

José então desapareceu e ninguém
Nunca mais o veria
Mas dizem que em noite de lua
Nas madrugadas mais frias
Pode-se ouvir os gritos de José
Chamando por Maria”.

Da Árvore do Dinheiro à Moral das Histórias

O homem contemporâneo se apresenta como um ser narcisista e individualista porque só se interessa por si, não sendo um ser coletivo preocupado com a comunidade. Temos na obra clássica da literatura ocidental e medieval o anti-herói Fausto que obcecado pela sede do saber, firma um pacto com o demônio, Mefistófeles, cuja aliança o conduzirá aos prazeres do conhecimento, da vida e do amor, representando na sua narrativa de anti-herói o homem contemporâneo, moderno.

Fausto aspira, acima de tudo, viver a felicidade. Tão remota lhe parece essa possibilidade, que ele se dispõe a entregar a alma ao demônio em troca de uma vivência, embora breve, desse sentimento. E como um anjo das trevas, o terrível Mefistófeles, domina a alma de Fausto, homem que é o símbolo de uma humanidade que errou procurando um caminho que a levasse ao ideal desesperadamente buscado. E como no nosso objeto empírico, Fausto deverá, no entanto, pagar um preço a Mefistófeles: entregar-se a ele. Nesse instante, o Diabo terá vencido Deus.

Na modernidade, há uma desvalorização de conceitos tradicionais como verdade, povo, nação, amor, respeito e família. O Deus, único dos católicos é tido como morto, a instituição do casamento é tida como instituição quebrável, as lojas de sex shop são onde se compra o fetiche e o prazer sexual e a Internet é o veículo de comunicação interpessoal de negócios, divertimento e informação. A arte e a literatura não escapam desta nova lógica, constituindo toda uma nova gramática. A cultura do ornamento e do signo, pastiche, revivals , ecletismo são alguns elementos desta nova composição.

A produção áudio-visual, da qual a animação faz parte, reflete o que já está permitido, então as pessoas introjetam estes novos valores. A característica do homem moderno construído através da mídia é que ele se permite experimentar, ele é contagiado com as novas formas de pensar e viver, este novo homem é capaz de transformar a tradição e partir para modernizá-la. A coragem deste enfrentamento pode servir como parâmetro de comparação com a atitude do protagonista que vive a jornada a seguir comentada, arcando com as mais diversas conseqüências.

Pode-se analisar, no vídeo, “A Árvore do Dinheiro”, que a narrativa dá-se no momento histórico do coronelismo do sertão nordestino. José, um rapaz humilde, em seu Mundo comum, apaixona-se por Maria, filha de um coronel. Percebe-se que o amor de José por Maria é o amor cortês que foi difundido na Europa no século XII,

“contemporaneamente aos lais bretões que atraiam o gosto das cortes para as emoções do amor e do maravilhoso feérico, surge o romance cortês, também de matéria bretã, o qual acaba por substituir as canções de gesta carolíngeas no gosto do público culto. A voga do romance cortês nas cortes européias teve início na corte de Marie de France, na Champagne”( Coelho, 2003:60-61).

O protagonista da história recebe o Chamado à aventura quando sabe, por Maria depois da missa, que a mesma foi oferecida por seu pai para casar com outro rapaz. Rituais católicos – missa e casamento – pontuam como Arautos a jornada de José, chamando-o para entrar na aventura.

José na angústia de perder sua amada (deuteragonista – personagem secundária na trama), vai rezar no morro pedindo a Deus uma solução e se colocando à disposição até mesmo para a Morte (suicídio). Como Moisés e Jesus rezaram no morro, José encontra neste lugar resignação e a solução.

Neste momento, o protagonista é abordado por um “estranho” que assume o arquétipo de Camaleão, transvestindo-se de homem misterioso portando capuz e cajado que se revela ao final da trama como o próprio Satanás.

O “estranho” também assume o papel de anti-mentor aconselhando o protagonista a plantar uma semente em noite de lua cheia que irá solucionar seu problema: obter riqueza, prosperidade e assim, podendo casar-se com Maria, seu grande amor. Esta característica de anti-mentor é ressaltada pelo presente mágico - a semente - que vai conduzir o herói a uma conduta que privilegia a ganância e o poder. Que representa, neste caso, o poder no sertão: terra, gado e dinheiro, tudo cercado por José. Contudo, esta semente além de trazer a “salvação” também vai representar a sua desgraça, pois o Satanás cobrará a dívida não negociada: a alma pela semente. O pacto com o Diabo travado por José é o mesmo que Fausto realiza com Mefistófeles.

Com a união de José e Maria, nota-se a vida harmoniosa e feliz do casal que tem filhos e cultiva uma árvore que em vez de produzir frutos, dá dinheiro. Esta árvore além de Aliada de José pode ser interpretada como presente mágico do anti-mentor xamã – possuidor de poderes sobrenaturais.

A etapa da Aproximação da caverna oculta é iniciada quando José percebe que a árvore morreu. Este evento, na verdade, é um prenúncio do porvir de José. Mesmo assim, o herói continua sua vida normalmente, mas sua Provação ainda virá. O encontro de José com o Sombra – seu antagonista – marca esta etapa. O confronto de José com o Diabo é realizado através da cobrança da dívida pendente.

Ao final da narrativa José desaparece com o diabo fazendo-se ouvir nas noites frias de lua cheia gritando por Maria. Nota-se um final infeliz marcado pela punição do herói por seus atos indevidos.

O narrador da história é onisciente neutro – aquele que narra “de cima”, adotando um ponto de vista divino, que sabe do começo, meio e fim da história. Representando, portanto, a consciência cristã que transmite a moral e os bons costumes aos interlocutores. No entanto, não interfere com instruções ou comentários sobre o comportamento das personagens. (Leite, 1987).

O vídeo é todo em preto e branco exceto em algumas passagens da história quando a cor vermelha recebe destaque nos grafismos em formato de coração. Estes momentos são percebidos quando José avista Maria com o pai no carro de boi e se apaixona feito menino; na flor que José dá para Maria na época do namoro e na representação do amor dos filhos. Finalizando a utilização do vermelho como cor de destaque, o Satanás apresenta-se a José na cor vermelha simbolicamente relacionada à paixão, dor, sexo e sangue.

O momento mítico da noite de lua cheia ressaltado também na trama pontua duas passagens relevantes: o plantio da semente mágica – onde a problematização da história inicia-se - e na transformação da história de José em lenda marcada por seus gritos chamando por Maria – finalizando a história e imprimindo a aura de mistério e medo da punição divina.

Considerações Finais

A reflexão sobre a peça áudio-visual, “A Árvore do Dinheiro”, é permeada pela relação tradição e modernidade, pela presença dos personagens arquetípicos e pela conseqüente construção de um Nordeste imaginário.

A narrativa mitológica concentra-se na influência judaico-cristã onde é pecado pedir e fazer qualquer coisa a Deus; querer não ser mortal, ter dinheiro sem trabalho. O erro do herói, José, foi fazer qualquer coisa pelo amor de Maria, sua amada. E ainda pensar em suicídio, pecado maior no catolicismo. O Diabo se apresenta como “estranho” e resolve todos os problemas, como a serpente no paraíso. Assim, há o período de deleite, mas o diabo vem cobrar as benesses.

A função da narrativa mitológica é propor uma lição moral para a humanidade, que, neste caso, é a punição do protagonista - pagar com sua alma a manipulação da riqueza sem trabalho e a felicidade sem sofrimento. Isso reflete a visão moderna do sistema capitalista: a busca da felicidade sendo conquistada a partir da posse de dinheiro.

Os agentes comunicacionais, conscientes ou não, gradualmente reconhecem a complexidade do modo de vida urbano moderno, especializado, interdependente, que cria um resíduo de necessidades desencontradas.

Percebendo, assim, o vácuo na orientação das relações pessoais e retransmitindo de geração em geração modelos de conduta, não mais tão dispostos a fórmulas maniqueístas como: o culto e o popular, o nacional e o estrangeiro, o tradicional e o moderno, apresentam-se ao final deste percurso como construções culturais híbridas.

O uso de uma técnica tradicional como é o caso da xilogravura, atrela-se a um elemento de modernidade - o vídeo de animação - apresentada como um novo suporte para a hibridização e representação da cultura nordestina contemporânea.


Referências

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1Direção e animação: Marcos Buccini e Diego Credidio; História e roteiro: Marcos Buccini; Versos: Felipe Pinto; Produção e Ilustrações: Marcos Buccini, Diego Credidio e Luciana De Mari; Narração: Sandrelly Coutinho; Som e Música: Wiliam P. e Leo D.


Mayra Cristine de Melo Waquim
Graduada no curso de Comunicação Social - habilitação em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1999, mestre em Administração pela mesma instituição em 2002. Professora da Universidade Federal de Pernambuco.

Meiriédna Queiroz Mota
Possui Graduação em Comunicação Social Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), é Mestre em Comunicação Social também pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Professora da Universidade Federal de Pernambuco.

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