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Os Desafios Analíticos Propostos pelo Fenômeno das Flash Mobs
 

Por José Carlos Ribeiro y Antonio Pereira
Número 41

Introdução
Cena 1 – cidade de São Paulo, Brasil:
Na Avenida Paulista às 15 horas, sob o telão ao lado do prédio da TV Gazeta, dezenas de pessoas sentadas na calçada sacam controles remotos de seus bolsos e, esticando os braços na direção do telão, tentam, por cerca de um minuto, zapear canais imaginários. Depois se levantam e, batendo palmas, dispersam-se.

Cena 2 – cidade de Nova York, EUA:
Cerca de 300 pessoas invadem uma loja de brinquedos da Times Square, para olhar e reverenciar um dinossauro de brinquedo gigante. Inicialmente, parecem estar hipnotizadas pela figura, mas, logo depois, lançam-se ao chão, gritando e agitando os braços. Enquanto os funcionários chamam a segurança, o grupo se dispersa com a mesma rapidez com que se reuniu.

Cena 3 – cidade de São Paulo, Brasil:
Às 12h40, umas 80 pessoas cruzam a avenida Paulista, na região próxima à rua Augusta, carregando papéis com a mensagem "Contra burguês, baixe MP3". Em seguida, tiram os sapatos e os batem, enfaticamente, diversas vezes contra o chão. O ato dura o tempo do semáforo abrir e fechar1 .

Cena 4 – cidade de Salvador, Brasil:
No horário de rush (13 horas), várias pessoas se encontram na passarela que liga a rodoviária municipal ao Shopping Iguatemi e sentam-se na área de trânsito dos pedestres durante quatro minutos. Chamam a atenção dos seguranças locais que tentam em vão dissuadir a aglomeração.

* * *

Tais descrições apontam para uma seqüência de manifestações daquilo que já foi classificado e passou para o vocabulário ordinário como flash mob, indicando através da própria denominação talvez o item que permita a melhor via de apropriação sintética do fenômeno. Independentemente do caráter assistemático que essas expressões insistem em ter, trata-se, em todas as instâncias, de eventos marcados pelo exercício de coordenação coletiva e por sua efemeridade e volatilidade. Ocorrem em circuitos urbanos, mais freqüentemente nos hipercentros das grandes metrópoles, e representam a ponta final, a culminância de um processo de articulação e organização que tem início no ambiente on-line. Através da Internet - principalmente em blogs, listas de discussão, canais de chat, instant messengers ou mensagens SMS trocadas via telefones celulares - e das facilidades proporcionadas pelas novas formas de comunicação sem fio (comunicação descentralizada, multiplicação da capacidade de circulação de informações em curtos espaços de tempo, rapidez nas rearticulações necessárias, etc.), os interessados em participar de uma flash mob encontram-se, deliberam, encaminham os procedimentos necessários à consecução do evento. Considerando esse aspecto, é que podemos pensar no fenômeno das flash mobs como uma construção processual, na qual o ato manifesto é apenas o elo final de uma cadeia de procedimentos previamente tencionada e articulada por alguns de seus participantes, os mobsters (organizadores dos eventos).

Essa descrição dos fenômenos torna-os especialmente interessantes no contexto de uma tentativa de refletir sobre “as novas formas de interação entre o espaço urbano, as tecnologias de comunicação e a sociedade”. Incidentes recentes no cotidiano das megalópoles, atrelados a uma aparente urgência pela criação/extensão de um tentáculo operacional no mundo real por parte dos usuários das novas tecnologias de comunicação, as flash mobs nos convidam a considerar algumas questões que atravessam o espaço da interrogação social e cultural. Trata-se de um caso exemplar daquilo que o antropólogo Michael Fischer denomina “formas de vida emergentes” (Fischer, 1999), peculiares à composição das sociedades complexas contemporâneas e que se tornam mais interessantes e convidativas à investigação na exata medida em que são capazes de desafiar as categorias das quais dispomos para organizar nossa compreensão de fenômenos sociais e culturais.

Algumas marcas dos desafios analíticos visíveis no caso das flash mobs envolvem, por exemplo, considerações a respeito de seu caráter enquanto manifestações artísticas – algo que surge ao considerarmos como as flash mobs se aproximam de formas canônicas e estabelecidas de expressão, como o happening e a performance. Ainda temos de observar as questões políticas colocadas pelo fenômeno – pois, evidentemente, trata-se de eventos que ocorrem no palco agonístico da contemporaneidade e são portadores de uma pauta de interesses. Artísticos ou políticos, quais são esses interesses? Quais as provocações que podemos localizar, em estado latente, em manifestações dessa natureza?

O valor simbólico das flash mobs, uma das justificativas para sua inclusão no âmbito de fenômenos sociais que interessam à nossa reflexão, aparece justamente neste ponto: no enigma que propõem ao analista. Suscitam facilmente perguntas como “O que tais eventos dizem, ou querem dizer, a respeito das formas e das possibilidades de organização de grupos de base (‘grassroots organization’) hoje?” E, ademais, aparecem por força de um aglomerado causal que inclui sempre laços de sociabilidade forjados e mantidos on-line, que são efetivamente apropriados por aqueles que, através de seu exercício, as tornam reais. Nesse sentido, há uma espécie de “atualização” no mundo real (Lévy, 1996) de algo derivado de especulações promovidas e circuladas exclusivamente em ambientes virtualizados. Se no horizonte IRL2 são eventos anônimos e voláteis, no mundo on-line seus autores, propositores e articuladores têm faces circunscritas e, além disso, cuidam para que a experiência seja sedimentada e passada adiante, fertilizando o caráter de construto cultural através da celebração de um verdadeiro folclore que povoa os inúmeros blogs dedicados ao tema.

Outro ponto passível de reflexão pode ser localizado na multiplicidade de percepções e interpretações que tais atos podem gerar. Como não se pode detectar de imediato nenhum sentido explícito para a presente aglomeração de pessoas, bem como para as ações sincrônicas desenvolvidas por elas, os observadores tendem a buscar razões que justifiquem ou, pelo menos, que mostrem a plausibilidade de tais manifestações. O que se nota, comumente, é uma identificação inicial com a forma de protesto tradicional (“Será uma passeata?”). Logo outras questões se apresentam: “Protesto a favor de quê?” ou “Contra o quê?”. Entretanto, antes mesmo de se intuir uma resposta, a turba costuma se dissipar sem deixar quaisquer vestígios de sua existência. Ali, onde apenas há um ou dois minutos havia um grupo organizado de pessoas realizando uma manifestação consistente, já não há mais nada a não ser a memória dos que testemunharam a ocorrência do evento. E é então que as interrogações dos circunstantes se intensificam: “Alguém pode me dizer o que aconteceu?”, “Onde estão as pessoas que estavam reunidas aqui?” Sob a perspectiva de um observador casual, a incoerência mostra-se alarmante, uma vez que não há pistas disponíveis que o ajudem no enquadramento da situação peculiar vivenciada.

O horizonte de problemas é, portanto, vasto, e vamos nos dedicar aqui a uma questão em particular e, à primeira vista, trivial: onde ocorrem as flash mobs? Justamente por seu caráter multifacetado e polimorfo, as flash mobs são um fenômeno particularmente interessante para colocar em pauta algumas questões que dizem respeito às noções de “lugar” e “localização” que colocamos em operação na análise de fenômenos sociais e culturais. Vejamos como.

Lugar como problema
A problematização do lugar já é um alvo costumeiro da investigação em torno do ciberespaço – textos como Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, de Marc Augé (1994) e City of Bits: Space, Place, and the Infobahn, de William Mitchell (1995) tornaram-se referências habituais a nutrir a interpelação a respeito do alojamento dos eventos comunicacionais e interativos que se passam na fronteira entre mundo dentro e fora da tela. O que está em pauta aqui é problematizar a noção do espaço como “dado” que herdamos de uma certa tradição, e tornar a noção de lugar mais hospitaleira para seus habitantes e usuários, investindo assim na exibição de suas dimensões sociais, culturais e políticas, ao invés de em sua configuração em termos de coordenadas cartesianas. Essa transição pode ser compreendida como uma passagem de descrições que se conectam à idéia de “espaço” para outras que buscam compreender as particularidades da dinâmica de ocupação e utilização dos espaços – o que dá margem a questões sobre o “lugar” de certas práticas, compreendidas como eventos que são sempre situados em um horizonte social, cultural e histórico.

Nesse sentido, uma operação inicial que parece contribuir para a compreensão do lugar onde ocorrem as flash mobs parte do trabalho de Michel Foucault. O autor cunhou o termo “heterotopia” precisamente para tentar dar conta de algo que se assemelha a um aspecto nuclear do fenômeno das flash mobs: a incidência de eventos que tornam um espaço algo mais que uma mera coleção de coordenadas, e o transformam em uma zona de confluência e convergência de tramas sociais diversas: “a heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (Foucault, 2001 (1967), p.418). Tal afirmação parece útil aqui por oferecer uma porta de entrada às questões que já anunciamos na introdução. A configuração das flash mobs como fenômenos fronteiriços – performances que têm algo da esfera artística, cuja consecução depende de certos arranjos sociológicos bastante específicos e atrelados ao uso e domínio de novas tecnologias informacionais e que parecem apontar para uma mensagem política – permite observá-las como heterotopias. Isto é: a aparente incompatibilidade entre esses espaços discursivos tão diferenciados é de alguma forma resolvida na confluência específica do fenômeno, de tal maneira que sua heterogeneidade ainda é mantida, e seu vigor como fios particulares só é enriquecido pela sua participação na trama heterotópica.

Observando isso com mais detalhe, uma posição cética pode sugerir que não há, aqui, qualquer questão nova. Há uma série de formas híbridas que parecem dar conta de um fenômeno como as flash mobs. A arte engajada, por exemplo, nos traz endereçamentos políticos explícitos, e configura assim uma manifestação que é, ao mesmo tempo, artística e política. Ainda, os eventos políticos hoje aparecem muitas vezes de tal maneira envoltos na aura do espetáculo que adquirem algo da expressão artística. O apuro estético e o apelo freqüente a convocações emocionais tornam o ambiente da política cada dia mais afim às manifestações tomadas como artísticas tais como o happening e a performance. Por que, então, recorrer à terminologia de Foucault e configurar o espaço de eventos relacionados às flash mobs como heterotopias?

O que importa considerar aqui é que a conexão entre as esferas artística e política é, no caso da arte engajada e da política espetacularizada, tomada como um dado, e participa da própria configuração do evento e do conjunto de expectativas que mobilizamos para realizá-los e/ou interpretá-los. No caso das flash mobs, o que é particularmente notável é a extensão em que o evento provoca tensões em nossa capacidade de decidir sobre sua natureza e operar um enquadramento automático, consistente com nossas concepções ordinárias sobre o que é um evento artístico ou político. Assumir que o evento é uma coisa ou outra é encarcerá-lo de antemão, e perder de vista que a possibilidade mais interessante é justamente a de revisitar e redescrever nossas categorias analíticas prontas.

Vejamos, por exemplo, o caráter dicotômico “ordem” e “caos” geralmente suscitado nestas manifestações. Se por um lado, as flash mobs aparentam, para os não participantes, uma verdadeira situação de desordem coletiva, por outro evidenciam, para os participantes, a necessária precisão na efetivação das ações, haja vista a cronometria indicada visando a sincronicidade em cada procedimento acertado. Nesse sentido, é que podemos afirmar que a característica diferenciadora e espetacular não é apenas a presença de atos dissonantes, mas também o fato desses serem pautados por uma ordem, uma sistematização e um controle que não podem ser detectados na manifestação em si, haja vista que foram acordados previamente no mundo on-line. Como se evidencia, a simples categorização das flash mobs como eventos acidentais ou previsíveis não esgota as possibilidades de entendimento do fenômeno em suas múltiplas facetas.

Em outra perspectiva, no que diz respeito à arte, o trabalho recente do filósofo Richard Shusterman (2000) aponta, de maneira bastante conseqüente, como as discussões em torno do tão alardeado “fim da arte” – onde “fim” é compreendido como capitulação e derrocada – tornam-se a fonte para que possamos refletir, numa chave contemporânea, a respeito dos “fins” da arte – “fim” aqui sendo entendido como projeto e devir, evocando assim toda uma gama de questões novas. Percebidas como manifestações artísticas que ocorrem nas cidades, as flash mobs convidam a especulação do flaneur sobre os limites do comportamento plausível na esfera pública. “O que está acontecendo aqui?”, pergunta-se o transeunte que testemunha uma flash mob e, antes que ele tenha chance de se estender em sua interrogação, o evento já pertence exclusivamente à sua memória e passa a ter lugar apenas na esfera virtual, na medida em que as memórias de vários envolvidos e circunstantes passam a ser negociadas em conversações e depositadas nos arquivos virtuais. Assim, os eventos das flash mobs assemelham-se aos happenings e performances já conhecidos, mas não podem ser reduzidos a eles. Recusar sua especificidade e particularidade é perder de vista justamente o que mais interessa, o que mais nos motiva a investigá-los.

O que estes eventos têm, ou podem ter, de propriamente político? De imediato, as flash mobs nos conduzem a outros incidentes semelhantes, mas que são marcados, de maneira mais óbvia, por seu conteúdo de protesto e afirmação pública de posicionamentos políticos, tais como as mobilizações contra a disseminação dos modelos neo-liberais que testemunhamos em Seattle, Washington e Praga, em 2000. Em seu comentário a respeito dessas manifestações, Naomi Klein (2003, p.41-57) salienta a importância de verificar que aquilo que à primeira vista parece ser uma faceta frágil de tais manifestações – como, por exemplo, sua falta de organização no sentido que tradicionalmente atribuímos à idéia de organização em movimentos dessa natureza – pode ser justamente sua mostra de maior relevância do ponto de vista político. Ao explorarem as possibilidades de organização através da internet e experimentarem o exercício de tarefas que envolvem um grande número de pessoas fazendo uso de centros de decisão flexíveis, mutáveis e distribuídos, os envolvidos em tais operações estão dando os primeiros passos para que possamos avançar, em termos de imaginação, inovação e criatividade no exercício do protesto político. Mais uma vez, aqui vemos que apropriar-se dos fenômenos em uma chave dada significa correr o risco de constranger justamente suas possibilidades expressivas mais significativas. A resposta mais produtiva parece ser encarar o desafio de mobilizar nosso aparato teórico e descritivo para dar conta do que há de inovador e rebelde em tais fenômenos.

Assim, considerando essas balizas, podemos nos aproximar da noção de heterotopia com outros olhos, e aferir sua possível propriedade para contribuir com a compreensão das flash mobs. Após chamar nossa atenção para o horizonte de oposições espaciais que admitimos como inteiramente dadas e que não ousamos tocar – tais como a entre os espaços público e privado, o espaço da família e o social, o espaço cultural e o útil, o espaço de trabalho e o de lazer – Foucault (2001 (1967), p.415) afirma que

Entre todos esses posicionamentos, o que me interessa são alguns dentre eles que tem a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas.

A especificidade das flash mobs parece ter afinidades com a configuração proposta por Foucault: elas parecem sugerir uma série de inversões, ou redistribuições de polaridades tradicionais, suspendendo por instantes juízos preconcebidos a respeito do que pode e do que não pode ser feito no espaço urbano – da ação que é legítima nos horizontes da sociabilidade ordinária mas que é capaz de ser provocativa e instigante.

Diante de tal quadro, e considerando a discussão proposta, podemos articular um outro caminho exploratório do fenômeno: a possível aproximação com o que se convencionou chamar de forma genérica como “zona autônoma temporária” (Bey, 2001), ou seja, uma série de manifestações de teor anarquista que não se vinculam ao padrão de agrupamento regido por uma lógica produtivista ou utilitária. Em tais manifestações, a ludicidade, por um lado, e a expressão de sentimentos e de comportamentos não habituais, por outro, são predominantemente privilegiados. Não há dúvida de que as flash mobs problematizam a relação habitual que os indivíduos mantêm com a apropriação das áreas urbanas, propiciando uma espécie de dessacralização da utilização funcional desses espaços. Entretanto, através de um olhar mais atento, podemos perceber que as “irrupções temporárias” que se esgueiram constantemente do olhar vigilante e controlador dos poderes constituídos, conforme preconizado por Bey (2001), nem sempre podem ser vivenciadas intensamente como tais nas manifestações das flash mobs. Isso por força de, pelo menos, três peculiaridades: primeiro, o caráter extremamente transitório de sua ocorrência (na maioria das vezes não ultrapassam cinco minutos de duração); segundo, a escolha preferencial por lugares centrais (ou hipercentros, na nossa nomenclatura) que evidenciam sua visibilidade, intensificada pelo costumeiro acompanhamento da mídia especializada; e terceiro, os comportamentos e ações estarem de antemão acordados, o que, de certa forma, desvirtua o caráter libertário absoluto proposto como um elemento nuclear das zonas autônomas temporárias. Novamente, a questão sobre a dificuldade de enquadramento de tais fenômenos em categorias predeterminadas se apresenta. Descrever as flash mobs como zonas autônomas temporárias pode ser feito apenas ao preço de sacrificar a observação de algumas de suas características centrais.

Podemos observar como é duradouro o desafio imposto pela aparentemente simples questão de estabelecer o lugar das flash mobs. Se consideramos que já existe, em nossa terminologia e em nosso aparato teórico corrente, uma possibilidade de alojamento preciso do fenômeno, vemos que, pelo menos no caso das alternativas expostas acima sempre há um artifício que nos limita a priori, e nos coage a “varrer para debaixo do tapete” certas características que parecem centrais nos eventos em questão. Se, por outro lado, aceitamos que tais particularidades põem em xeque a terminologia e o trabalho analítico de praxe, temos de forjar ou fazer uso de aportes teóricos inovadores, que se mostrem mais consistentes e profícuos para o trabalho de investigação. Para fazer isso, é preciso estar de acordo com Fischer (1999, p. 456), quando ele diz que manifestações da vida contemporânea estão, com uma freqüência cada vez maior, ultrapassando as pedagogias nas quais fomos treinados. Precisamos, ao que parece, desenvolver uma certa destreza para lidar com a incerteza, a volatilidade, e o caráter híbrido de fenômenos como as flash mobs.

Conclusão: O lugar das flash mobs
Ítalo Calvino (1993) diz que uma das pautas do nosso século XXI deverá ser um interesse pela multiplicidade como um valor a ser prezado em termos estéticos, éticos e políticos. Calvino nos devolve às observações de Foucault (2001(1967), p.415), quando este diz que

O espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos [...] [ que colocam] o problema de saber que relações de vizinhança, que tipo de estocagem, de circulação, de localização, de classificação dos elementos humanos devem ser mantidos de preferência em tal ou tal situação para se chegar a tal ou tal fim.

As questões que circundam o fenômeno das flash mobs continuam em pauta, principalmente no que tange ao espelhamento de uma certa ineficácia na utilização dos suportes referenciais analíticos tradicionais para explicar essas manifestações. Nesse sentido, a tarefa mais instigante para o analista se traduz, ao nosso olhar, na busca da identificação de categorias referenciais diferenciadas (ou não usuais) que possam sugerir perspectivas de entendimento mais abrangentes, considerando as diversas peculiaridades apontadas, e tendo como finalidade principal reencontrar as conexões dispersas na multiplicidade ressaltada por Calvino (1993).

Como buscamos demonstrar, a complexidade que rege essas articulações sociais não pode ser examinada sem levar em conta a possibilidade da justaposição de elementos díspares, bem como do encadeamento de ações sobrepostas que se evidenciam em uma situação ambientada em um lugar típico da polis tecno-urbana. As flash mobs solicitam reflexões adicionais mais apuradas na relação estabelecida entre a efemeridade de sua expressão no espaço público e a conseqüente apropriação do próprio espaço público nessas circunstâncias.

Mostra-se evidente a importância de investigações e aportes teóricos nesta área buscando explorar e compreender esta nova configuração. Tal fato se apresenta tanto em relação à necessidade de análise dos processos envolvidos na construção dos comportamentos e “tarefas” combinadas na intervenção proposta – o que buscamos contribuir com nossas reflexões aqui representadas – quanto em um plano mais abrangente, através da análise do cenário da contemporaneidade onde tais condutas se apresentam, a fim de que seja efetuada uma melhor compreensão da totalidade dos componentes envolvidos na formatação dessas manifestações que, embora tenham sido arrefecidas em sua quantidade em relação à efervescência inicial, continuam a promover inquietações interessantes. Essas inquietações talvez nos dirijam a questionar a tranqüilidade metodológica que autores como Wilson e Peterson (2002) manifestam. Avaliando o caráter surpreendentemente mutável das conseqüências da computação em rede, cujos impactos sociais e culturais eram absolutamente imprevisíveis quando da época de seu desenvolvimento inicial nos anos 60, Wilson e Peterson (2002, p.462) dizem que “essas novas práticas comunicativas demandam, com muita propriedade, a atenção dos antropólogos, não para inventar abordagens analíticas completamente novas para os espaços virtuais, mas para fazer uso de nossa competência existente [na investigação] sobre a cultura e a comunicação humana”.

Efetivamente, podemos lançar mão de um considerável capital teórico para tentar dar conta de um fenômeno como as flash mobs. Entretanto, parece mais rentável acreditar que nossos movimentos teóricos participam do mesmo horizonte de flexibilidade que nossas práticas sociais e que, portanto, é cabível a consideração de uma exaustão teórica diante de fenômenos novos, complexos, e refratários a um certo aparato tradicional. Ao invés de fazer como Wilson e Peterson (2002), que parecem fechar a porta de antemão para a possibilidade de redescrições da teoria, tornando-a aparentemente impermeável ao influxo do novo, nos aproximamos de uma posição como aquela atribuída a Walter Benjamin (1987) que, segundo consta, costumava dizer que, em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo. Fenômenos como as flash mobs parecem fornecer boas oportunidades de vivificação teórica para aqueles que se movem a partir dessa disposição, e que aceitam o risco inerente à tentativa de compreensão daquilo que ainda não está totalmente cristalizado.


Notas:

1 Para descrições mais detalhadas, ver os sites: cena 1: <http://www.novae.inf.br/centrodaterra/nova_fissura.htm>; cena 2: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u13613.shtml>;
cena 3: <http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/mundovirtual/1302501-1303000/1302842/1302842_1.xml> .
2 IRL - in real life - expressão utilizada para caracterizar as situações ocorridas na dimensão espaço-temporal da vida real, em contraponto`a noção de espaço virtual, ou ciberespaço.


Referencias:

AUGÉ, Marc. (1994). Não-lugares: Introdução a uma antropoloia da supermodernidade. Campinas: Papirus.
BENJAMIN, Walter. (1987). Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
BEY, Hakim (2001). TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad.
CALVINO, Ítalo (1993). Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras.
FISCHER, Michael (1999). Emergent Forms of Life: Anthropologies of late and post-modernities. Annual Review of Anthropology 28: 455-478.
FOUCAULT, Michel (2001(1967)). Outros Espaços. In: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema (Ditos e Escritos III). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
KLEIN, Naomi (2003). Cercas e Janelas: Na linha de frente do debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record.
LÉVY, Pierre (1996). O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34
MITCHELL, William (1995). City of Bits: Space, Place, and the Infobahn. Cambridge: MIT Press.
SHUSTERMAN, Richard (2000). Performing Live: Aesthetic alternatives for the ends of art. Ithaca: Cornell University Press.
WILSON, Samuel; PETERSON, Leighton. (2002). The Anthropology of Online Communities. Annual Review of Anthropology 31: 449-467.


José Carlos Ribeiro
FTC-Salvador, Brasil
Antonio Marcos Pereira
UFMG-Belo Horizonte, Brasil