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Por José Carlos Ribeiro y Antonio Pereira
Número 41
Introdução
Cena 1 – cidade de São Paulo, Brasil:
Na Avenida Paulista às 15 horas, sob o telão ao lado
do prédio da TV Gazeta, dezenas de pessoas sentadas na calçada
sacam controles remotos de seus bolsos e, esticando os braços
na direção do telão, tentam, por cerca de um
minuto, zapear canais imaginários. Depois se levantam e,
batendo palmas, dispersam-se.
Cena 2 – cidade de Nova York,
EUA:
Cerca de 300 pessoas invadem uma loja de brinquedos da Times Square,
para olhar e reverenciar um dinossauro de brinquedo gigante. Inicialmente,
parecem estar hipnotizadas pela figura, mas, logo depois, lançam-se
ao chão, gritando e agitando os braços. Enquanto os
funcionários chamam a segurança, o grupo se dispersa
com a mesma rapidez com que se reuniu.
Cena 3 – cidade de São
Paulo, Brasil:
Às 12h40, umas 80 pessoas cruzam a avenida Paulista, na região
próxima à rua Augusta, carregando papéis com
a mensagem "Contra burguês, baixe MP3". Em seguida,
tiram os sapatos e os batem, enfaticamente, diversas vezes contra
o chão. O ato dura o tempo do semáforo abrir e fechar1
.
Cena 4 – cidade de Salvador,
Brasil:
No horário de rush (13 horas), várias pessoas
se encontram na passarela que liga a rodoviária municipal
ao Shopping Iguatemi e sentam-se na área de trânsito
dos pedestres durante quatro minutos. Chamam a atenção
dos seguranças locais que tentam em vão dissuadir
a aglomeração.
* * *
Tais descrições apontam
para uma seqüência de manifestações daquilo
que já foi classificado e passou para o vocabulário
ordinário como flash mob, indicando através
da própria denominação talvez o item que permita
a melhor via de apropriação sintética do fenômeno.
Independentemente do caráter assistemático que essas
expressões insistem em ter, trata-se, em todas as instâncias,
de eventos marcados pelo exercício de coordenação
coletiva e por sua efemeridade e volatilidade. Ocorrem em circuitos
urbanos, mais freqüentemente nos hipercentros das grandes metrópoles,
e representam a ponta final, a culminância de um processo
de articulação e organização que tem
início no ambiente on-line. Através da Internet -
principalmente em blogs, listas de discussão, canais
de chat, instant messengers ou mensagens SMS trocadas
via telefones celulares - e das facilidades proporcionadas pelas
novas formas de comunicação sem fio (comunicação
descentralizada, multiplicação da capacidade de circulação
de informações em curtos espaços de tempo,
rapidez nas rearticulações necessárias, etc.),
os interessados em participar de uma flash mob encontram-se,
deliberam, encaminham os procedimentos necessários à
consecução do evento. Considerando esse aspecto, é
que podemos pensar no fenômeno das flash mobs como
uma construção processual, na qual o ato manifesto
é apenas o elo final de uma cadeia de procedimentos previamente
tencionada e articulada por alguns de seus participantes, os mobsters
(organizadores dos eventos).
Essa descrição dos
fenômenos torna-os especialmente interessantes no contexto
de uma tentativa de refletir sobre “as novas formas de interação
entre o espaço urbano, as tecnologias de comunicação
e a sociedade”. Incidentes recentes no cotidiano das megalópoles,
atrelados a uma aparente urgência pela criação/extensão
de um tentáculo operacional no mundo real por parte dos usuários
das novas tecnologias de comunicação, as flash
mobs nos convidam a considerar algumas questões que
atravessam o espaço da interrogação social
e cultural. Trata-se de um caso exemplar daquilo que o antropólogo
Michael Fischer denomina “formas de vida emergentes”
(Fischer, 1999), peculiares à composição das
sociedades complexas contemporâneas e que se tornam mais interessantes
e convidativas à investigação na exata medida
em que são capazes de desafiar as categorias das quais dispomos
para organizar nossa compreensão de fenômenos sociais
e culturais.
Algumas marcas dos desafios analíticos
visíveis no caso das flash mobs envolvem, por exemplo,
considerações a respeito de seu caráter enquanto
manifestações artísticas – algo que surge
ao considerarmos como as flash mobs se aproximam de formas
canônicas e estabelecidas de expressão, como o happening
e a performance. Ainda temos de observar as questões políticas
colocadas pelo fenômeno – pois, evidentemente, trata-se
de eventos que ocorrem no palco agonístico da contemporaneidade
e são portadores de uma pauta de interesses. Artísticos
ou políticos, quais são esses interesses? Quais as
provocações que podemos localizar, em estado latente,
em manifestações dessa natureza?
O valor simbólico das flash
mobs, uma das justificativas para sua inclusão no âmbito
de fenômenos sociais que interessam à nossa reflexão,
aparece justamente neste ponto: no enigma que propõem ao
analista. Suscitam facilmente perguntas como “O que tais eventos
dizem, ou querem dizer, a respeito das formas e das possibilidades
de organização de grupos de base (‘grassroots
organization’) hoje?” E, ademais, aparecem por força
de um aglomerado causal que inclui sempre laços de sociabilidade
forjados e mantidos on-line, que são efetivamente apropriados
por aqueles que, através de seu exercício, as tornam
reais. Nesse sentido, há uma espécie de “atualização”
no mundo real (Lévy, 1996) de algo derivado de especulações
promovidas e circuladas exclusivamente em ambientes virtualizados.
Se no horizonte IRL2 são
eventos anônimos e voláteis, no mundo on-line
seus autores, propositores e articuladores têm faces circunscritas
e, além disso, cuidam para que a experiência seja sedimentada
e passada adiante, fertilizando o caráter de construto cultural
através da celebração de um verdadeiro folclore
que povoa os inúmeros blogs dedicados ao tema.
Outro ponto passível de reflexão
pode ser localizado na multiplicidade de percepções
e interpretações que tais atos podem gerar. Como não
se pode detectar de imediato nenhum sentido explícito para
a presente aglomeração de pessoas, bem como para as
ações sincrônicas desenvolvidas por elas, os
observadores tendem a buscar razões que justifiquem ou, pelo
menos, que mostrem a plausibilidade de tais manifestações.
O que se nota, comumente, é uma identificação
inicial com a forma de protesto tradicional (“Será
uma passeata?”). Logo outras questões se apresentam:
“Protesto a favor de quê?” ou “Contra o
quê?”. Entretanto, antes mesmo de se intuir uma resposta,
a turba costuma se dissipar sem deixar quaisquer vestígios
de sua existência. Ali, onde apenas há um ou dois minutos
havia um grupo organizado de pessoas realizando uma manifestação
consistente, já não há mais nada a não
ser a memória dos que testemunharam a ocorrência do
evento. E é então que as interrogações
dos circunstantes se intensificam: “Alguém pode me
dizer o que aconteceu?”, “Onde estão as pessoas
que estavam reunidas aqui?” Sob a perspectiva de um observador
casual, a incoerência mostra-se alarmante, uma vez que não
há pistas disponíveis que o ajudem no enquadramento
da situação peculiar vivenciada.
O horizonte de problemas é,
portanto, vasto, e vamos nos dedicar aqui a uma questão em
particular e, à primeira vista, trivial: onde ocorrem as
flash mobs? Justamente por seu caráter multifacetado
e polimorfo, as flash mobs são um fenômeno
particularmente interessante para colocar em pauta algumas questões
que dizem respeito às noções de “lugar”
e “localização” que colocamos em operação
na análise de fenômenos sociais e culturais. Vejamos
como.
Lugar como problema
A problematização do lugar já é um alvo
costumeiro da investigação em torno do ciberespaço
– textos como Não-lugares: Introdução
a uma antropologia da supermodernidade, de Marc Augé
(1994) e City of Bits: Space, Place, and the Infobahn, de William
Mitchell (1995) tornaram-se referências habituais a nutrir
a interpelação a respeito do alojamento dos eventos
comunicacionais e interativos que se passam na fronteira entre mundo
dentro e fora da tela. O que está em pauta aqui é
problematizar a noção do espaço como “dado”
que herdamos de uma certa tradição, e tornar a noção
de lugar mais hospitaleira para seus habitantes e usuários,
investindo assim na exibição de suas dimensões
sociais, culturais e políticas, ao invés de em sua
configuração em termos de coordenadas cartesianas.
Essa transição pode ser compreendida como uma passagem
de descrições que se conectam à idéia
de “espaço” para outras que buscam compreender
as particularidades da dinâmica de ocupação
e utilização dos espaços – o que dá
margem a questões sobre o “lugar” de certas práticas,
compreendidas como eventos que são sempre situados em um
horizonte social, cultural e histórico.
Nesse sentido, uma operação
inicial que parece contribuir para a compreensão do lugar
onde ocorrem as flash mobs parte do trabalho de Michel
Foucault. O autor cunhou o termo “heterotopia” precisamente
para tentar dar conta de algo que se assemelha a um aspecto nuclear
do fenômeno das flash mobs: a incidência de
eventos que tornam um espaço algo mais que uma mera coleção
de coordenadas, e o transformam em uma zona de confluência
e convergência de tramas sociais diversas: “a heterotopia
tem o poder de justapor em um só lugar real vários
espaços, vários posicionamentos que são em
si próprios incompatíveis” (Foucault, 2001 (1967),
p.418). Tal afirmação parece útil aqui por
oferecer uma porta de entrada às questões que já
anunciamos na introdução. A configuração
das flash mobs como fenômenos fronteiriços
– performances que têm algo da esfera artística,
cuja consecução depende de certos arranjos sociológicos
bastante específicos e atrelados ao uso e domínio
de novas tecnologias informacionais e que parecem apontar para uma
mensagem política – permite observá-las como
heterotopias. Isto é: a aparente incompatibilidade entre
esses espaços discursivos tão diferenciados é
de alguma forma resolvida na confluência específica
do fenômeno, de tal maneira que sua heterogeneidade ainda
é mantida, e seu vigor como fios particulares só é
enriquecido pela sua participação na trama heterotópica.
Observando isso com mais detalhe,
uma posição cética pode sugerir que não
há, aqui, qualquer questão nova. Há uma série
de formas híbridas que parecem dar conta de um fenômeno
como as flash mobs. A arte engajada, por exemplo, nos traz
endereçamentos políticos explícitos, e configura
assim uma manifestação que é, ao mesmo tempo,
artística e política. Ainda, os eventos políticos
hoje aparecem muitas vezes de tal maneira envoltos na aura do espetáculo
que adquirem algo da expressão artística. O apuro
estético e o apelo freqüente a convocações
emocionais tornam o ambiente da política cada dia mais afim
às manifestações tomadas como artísticas
tais como o happening e a performance. Por que, então,
recorrer à terminologia de Foucault e configurar o espaço
de eventos relacionados às flash mobs como heterotopias?
O que importa considerar aqui é
que a conexão entre as esferas artística e política
é, no caso da arte engajada e da política espetacularizada,
tomada como um dado, e participa da própria configuração
do evento e do conjunto de expectativas que mobilizamos para realizá-los
e/ou interpretá-los. No caso das flash mobs, o que
é particularmente notável é a extensão
em que o evento provoca tensões em nossa capacidade de decidir
sobre sua natureza e operar um enquadramento automático,
consistente com nossas concepções ordinárias
sobre o que é um evento artístico ou político.
Assumir que o evento é uma coisa ou outra é encarcerá-lo
de antemão, e perder de vista que a possibilidade mais interessante
é justamente a de revisitar e redescrever nossas categorias
analíticas prontas.
Vejamos, por exemplo, o caráter
dicotômico “ordem” e “caos” geralmente
suscitado nestas manifestações. Se por um lado, as
flash mobs aparentam, para os não participantes,
uma verdadeira situação de desordem coletiva, por
outro evidenciam, para os participantes, a necessária precisão
na efetivação das ações, haja vista
a cronometria indicada visando a sincronicidade em cada procedimento
acertado. Nesse sentido, é que podemos afirmar que a característica
diferenciadora e espetacular não é apenas a presença
de atos dissonantes, mas também o fato desses serem pautados
por uma ordem, uma sistematização e um controle que
não podem ser detectados na manifestação em
si, haja vista que foram acordados previamente no mundo on-line.
Como se evidencia, a simples categorização das flash
mobs como eventos acidentais ou previsíveis não
esgota as possibilidades de entendimento do fenômeno em suas
múltiplas facetas.
Em outra perspectiva, no que diz
respeito à arte, o trabalho recente do filósofo Richard
Shusterman (2000) aponta, de maneira bastante conseqüente,
como as discussões em torno do tão alardeado “fim
da arte” – onde “fim” é compreendido
como capitulação e derrocada – tornam-se a fonte
para que possamos refletir, numa chave contemporânea, a respeito
dos “fins” da arte – “fim” aqui sendo
entendido como projeto e devir, evocando assim toda uma gama de
questões novas. Percebidas como manifestações
artísticas que ocorrem nas cidades, as flash mobs
convidam a especulação do flaneur sobre os
limites do comportamento plausível na esfera pública.
“O que está acontecendo aqui?”, pergunta-se o
transeunte que testemunha uma flash mob e, antes que ele tenha chance
de se estender em sua interrogação, o evento já
pertence exclusivamente à sua memória e passa a ter
lugar apenas na esfera virtual, na medida em que as memórias
de vários envolvidos e circunstantes passam a ser negociadas
em conversações e depositadas nos arquivos virtuais.
Assim, os eventos das flash mobs assemelham-se aos happenings
e performances já conhecidos, mas não podem ser reduzidos
a eles. Recusar sua especificidade e particularidade é perder
de vista justamente o que mais interessa, o que mais nos motiva
a investigá-los.
O que estes eventos têm, ou
podem ter, de propriamente político? De imediato, as flash
mobs nos conduzem a outros incidentes semelhantes, mas que
são marcados, de maneira mais óbvia, por seu conteúdo
de protesto e afirmação pública de posicionamentos
políticos, tais como as mobilizações contra
a disseminação dos modelos neo-liberais que testemunhamos
em Seattle, Washington e Praga, em 2000. Em seu comentário
a respeito dessas manifestações, Naomi Klein (2003,
p.41-57) salienta a importância de verificar que aquilo que
à primeira vista parece ser uma faceta frágil de tais
manifestações – como, por exemplo, sua falta
de organização no sentido que tradicionalmente atribuímos
à idéia de organização em movimentos
dessa natureza – pode ser justamente sua mostra de maior relevância
do ponto de vista político. Ao explorarem as possibilidades
de organização através da internet e experimentarem
o exercício de tarefas que envolvem um grande número
de pessoas fazendo uso de centros de decisão flexíveis,
mutáveis e distribuídos, os envolvidos em tais operações
estão dando os primeiros passos para que possamos avançar,
em termos de imaginação, inovação e
criatividade no exercício do protesto político. Mais
uma vez, aqui vemos que apropriar-se dos fenômenos em uma
chave dada significa correr o risco de constranger justamente suas
possibilidades expressivas mais significativas. A resposta mais
produtiva parece ser encarar o desafio de mobilizar nosso aparato
teórico e descritivo para dar conta do que há de inovador
e rebelde em tais fenômenos.
Assim, considerando essas balizas,
podemos nos aproximar da noção de heterotopia com
outros olhos, e aferir sua possível propriedade para contribuir
com a compreensão das flash mobs. Após chamar
nossa atenção para o horizonte de oposições
espaciais que admitimos como inteiramente dadas e que não
ousamos tocar – tais como a entre os espaços público
e privado, o espaço da família e o social, o espaço
cultural e o útil, o espaço de trabalho e o de lazer
– Foucault (2001 (1967), p.415) afirma que
Entre todos esses posicionamentos,
o que me interessa são alguns dentre eles que tem a curiosa
propriedade de estar em relação com todos os outros
posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam
ou invertem o conjunto de relações que se encontram
por eles designadas, refletidas ou pensadas.
A especificidade das flash mobs
parece ter afinidades com a configuração proposta
por Foucault: elas parecem sugerir uma série de inversões,
ou redistribuições de polaridades tradicionais, suspendendo
por instantes juízos preconcebidos a respeito do que pode
e do que não pode ser feito no espaço urbano –
da ação que é legítima nos horizontes
da sociabilidade ordinária mas que é capaz de ser
provocativa e instigante.
Diante de tal quadro, e considerando
a discussão proposta, podemos articular um outro caminho
exploratório do fenômeno: a possível aproximação
com o que se convencionou chamar de forma genérica como “zona
autônoma temporária” (Bey, 2001), ou seja, uma
série de manifestações de teor anarquista que
não se vinculam ao padrão de agrupamento regido por
uma lógica produtivista ou utilitária. Em tais manifestações,
a ludicidade, por um lado, e a expressão de sentimentos e
de comportamentos não habituais, por outro, são predominantemente
privilegiados. Não há dúvida de que as flash
mobs problematizam a relação habitual que os
indivíduos mantêm com a apropriação das
áreas urbanas, propiciando uma espécie de dessacralização
da utilização funcional desses espaços. Entretanto,
através de um olhar mais atento, podemos perceber que as
“irrupções temporárias” que se
esgueiram constantemente do olhar vigilante e controlador dos poderes
constituídos, conforme preconizado por Bey (2001), nem sempre
podem ser vivenciadas intensamente como tais nas manifestações
das flash mobs. Isso por força de, pelo menos, três
peculiaridades: primeiro, o caráter extremamente transitório
de sua ocorrência (na maioria das vezes não ultrapassam
cinco minutos de duração); segundo, a escolha preferencial
por lugares centrais (ou hipercentros, na nossa nomenclatura) que
evidenciam sua visibilidade, intensificada pelo costumeiro acompanhamento
da mídia especializada; e terceiro, os comportamentos e ações
estarem de antemão acordados, o que, de certa forma, desvirtua
o caráter libertário absoluto proposto como um elemento
nuclear das zonas autônomas temporárias. Novamente,
a questão sobre a dificuldade de enquadramento de tais fenômenos
em categorias predeterminadas se apresenta. Descrever as flash
mobs como zonas autônomas temporárias pode ser
feito apenas ao preço de sacrificar a observação
de algumas de suas características centrais.
Podemos observar como é duradouro
o desafio imposto pela aparentemente simples questão de estabelecer
o lugar das flash mobs. Se consideramos que já existe,
em nossa terminologia e em nosso aparato teórico corrente,
uma possibilidade de alojamento preciso do fenômeno, vemos
que, pelo menos no caso das alternativas expostas acima sempre há
um artifício que nos limita a priori, e nos coage a “varrer
para debaixo do tapete” certas características que
parecem centrais nos eventos em questão. Se, por outro lado,
aceitamos que tais particularidades põem em xeque a terminologia
e o trabalho analítico de praxe, temos de forjar ou fazer
uso de aportes teóricos inovadores, que se mostrem mais consistentes
e profícuos para o trabalho de investigação.
Para fazer isso, é preciso estar de acordo com Fischer (1999,
p. 456), quando ele diz que manifestações da vida
contemporânea estão, com uma freqüência
cada vez maior, ultrapassando as pedagogias nas quais fomos treinados.
Precisamos, ao que parece, desenvolver uma certa destreza para lidar
com a incerteza, a volatilidade, e o caráter híbrido
de fenômenos como as flash mobs.
Conclusão: O lugar
das flash mobs
Ítalo Calvino (1993) diz que uma das pautas do nosso século
XXI deverá ser um interesse pela multiplicidade como um valor
a ser prezado em termos estéticos, éticos e políticos.
Calvino nos devolve às observações de Foucault
(2001(1967), p.415), quando este diz que
O espaço se oferece a nós
sob a forma de relações de posicionamentos [...]
[ que colocam] o problema de saber que relações
de vizinhança, que tipo de estocagem, de circulação,
de localização, de classificação dos
elementos humanos devem ser mantidos de preferência em tal
ou tal situação para se chegar a tal ou tal fim.
As questões que circundam
o fenômeno das flash mobs continuam em pauta, principalmente
no que tange ao espelhamento de uma certa ineficácia na utilização
dos suportes referenciais analíticos tradicionais para explicar
essas manifestações. Nesse sentido, a tarefa mais
instigante para o analista se traduz, ao nosso olhar, na busca da
identificação de categorias referenciais diferenciadas
(ou não usuais) que possam sugerir perspectivas de entendimento
mais abrangentes, considerando as diversas peculiaridades apontadas,
e tendo como finalidade principal reencontrar as conexões
dispersas na multiplicidade ressaltada por Calvino (1993).
Como buscamos demonstrar, a complexidade
que rege essas articulações sociais não pode
ser examinada sem levar em conta a possibilidade da justaposição
de elementos díspares, bem como do encadeamento de ações
sobrepostas que se evidenciam em uma situação ambientada
em um lugar típico da polis tecno-urbana. As flash mobs
solicitam reflexões adicionais mais apuradas na relação
estabelecida entre a efemeridade de sua expressão no espaço
público e a conseqüente apropriação do
próprio espaço público nessas circunstâncias.
Mostra-se evidente a importância
de investigações e aportes teóricos nesta área
buscando explorar e compreender esta nova configuração.
Tal fato se apresenta tanto em relação à necessidade
de análise dos processos envolvidos na construção
dos comportamentos e “tarefas” combinadas na intervenção
proposta – o que buscamos contribuir com nossas reflexões
aqui representadas – quanto em um plano mais abrangente, através
da análise do cenário da contemporaneidade onde tais
condutas se apresentam, a fim de que seja efetuada uma melhor compreensão
da totalidade dos componentes envolvidos na formatação
dessas manifestações que, embora tenham sido arrefecidas
em sua quantidade em relação à efervescência
inicial, continuam a promover inquietações interessantes.
Essas inquietações talvez nos dirijam a questionar
a tranqüilidade metodológica que autores como Wilson
e Peterson (2002) manifestam. Avaliando o caráter surpreendentemente
mutável das conseqüências da computação
em rede, cujos impactos sociais e culturais eram absolutamente imprevisíveis
quando da época de seu desenvolvimento inicial nos anos 60,
Wilson e Peterson (2002, p.462) dizem que “essas novas práticas
comunicativas demandam, com muita propriedade, a atenção
dos antropólogos, não para inventar abordagens analíticas
completamente novas para os espaços virtuais, mas para fazer
uso de nossa competência existente [na investigação]
sobre a cultura e a comunicação humana”.
Efetivamente, podemos lançar
mão de um considerável capital teórico para
tentar dar conta de um fenômeno como as flash mobs.
Entretanto, parece mais rentável acreditar que nossos movimentos
teóricos participam do mesmo horizonte de flexibilidade que
nossas práticas sociais e que, portanto, é cabível
a consideração de uma exaustão teórica
diante de fenômenos novos, complexos, e refratários
a um certo aparato tradicional. Ao invés de fazer como Wilson
e Peterson (2002), que parecem fechar a porta de antemão
para a possibilidade de redescrições da teoria, tornando-a
aparentemente impermeável ao influxo do novo, nos aproximamos
de uma posição como aquela atribuída a Walter
Benjamin (1987) que, segundo consta, costumava dizer que, em cada
época, é preciso arrancar a tradição
ao conformismo. Fenômenos como as flash mobs parecem
fornecer boas oportunidades de vivificação teórica
para aqueles que se movem a partir dessa disposição,
e que aceitam o risco inerente à tentativa de compreensão
daquilo que ainda não está totalmente cristalizado.
Notas:
1
Para descrições mais detalhadas, ver os sites: cena
1: <http://www.novae.inf.br/centrodaterra/nova_fissura.htm>;
cena 2: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u13613.shtml>;
cena 3: <http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/mundovirtual/1302501-1303000/1302842/1302842_1.xml>
.
2 IRL - in real life - expressão
utilizada para caracterizar as situações ocorridas
na dimensão espaço-temporal da vida real, em contraponto`a
noção de espaço virtual, ou ciberespaço.
Referencias:
AUGÉ, Marc. (1994). Não-lugares:
Introdução a uma antropoloia da supermodernidade.
Campinas: Papirus.
BENJAMIN, Walter. (1987). Obras escolhidas. Vol. 1. Magia
e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura
e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
BEY, Hakim (2001). TAZ: zona autônoma temporária.
São Paulo: Conrad.
CALVINO, Ítalo (1993). Seis Propostas para o Próximo
Milênio. São Paulo: Companhia das Letras.
FISCHER, Michael (1999). Emergent Forms of Life: Anthropologies
of late and post-modernities. Annual Review of Anthropology
28: 455-478.
FOUCAULT, Michel (2001(1967)). Outros Espaços. In: Estética:
Literatura e Pintura, Música e Cinema (Ditos e Escritos
III). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
KLEIN, Naomi (2003). Cercas e Janelas: Na linha de frente do
debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record.
LÉVY, Pierre (1996). O que é o virtual? São
Paulo: Ed. 34
MITCHELL, William (1995). City of Bits: Space, Place, and the
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SHUSTERMAN, Richard (2000). Performing Live: Aesthetic alternatives
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WILSON, Samuel; PETERSON, Leighton. (2002). The Anthropology
of Online Communities. Annual Review of Anthropology 31: 449-467.
José
Carlos Ribeiro
FTC-Salvador, Brasil
Antonio Marcos Pereira
UFMG-Belo Horizonte, Brasil |