México

artigo

À margem do olhar, À margem da imagem - regimes de visibilidade na fotografia documental

Por Kati Eliana Caetano e Anuschka Reichmann Lemos
Número 59

Resumo:

A imprensa, de maneira geral, e especialmente o fotojornalismo, visam trazer cada vez mais à cena aquilo que se configura como segmentos "à margem" da sociedade, figurativizados nas diversas manifestações da exclusão, da periferia, enfim de uma série de categorizações (cujas especificidades semântico-sociais este trabalho não objetiva discutir). Assiste-se a uma classe de produções discursivas, de caráter midiático, que tem se empenhado em formalizar visualmente não apenas o relato de tais situações, mas, sobretudo, a sua forma de experimentá-las. A questão precípua nessas propostas consiste justamente em resgatar, pelo exercício do sentido experimentado, a visibilidade daquilo que se tornou praticamente invisível em nossa sociedade pelo esgotamento de sua recorrente exposição. Define-se, portanto, como um regime condicionado aos modos de ver, que é tratado aqui pelo seu viés de "fazer sentido" e não apenas como a realização de uma mera presença diante do olhar. Abordar o regime da visibilidade implica reconhecer nos discursos visuais mecanismos de articulação de presenças e ausências concretizadas em atos de mostrar ou ocultar, assim como mostrar-se ou ocultar-se dependendo da instância de análise da imagem. Em suma, procedimentos submetidos às modalizações do poder e querer ser ou não ser visto. Para o desenvolvimento da presente reflexão, algumas imagens representativas de formas conflituosas de visibilidade serão analisadas. Essas imagens são passíveis de serem associadas à discussão da ausência e da presença na formalização do ver/ser visto, manifestada no nível plástico das imagens, em estreito vínculo com a constituição da própria subjetividade na esfera política e social das relações humanas.

Abstract:

The press, generally speaking, and especially the photojournalism, intends to bring up what is configured as segments from "the edge" of society, figurated in several manifestations of exclusion and borderline lives, in a number of categorizations (this work does not intend to discuss, however, the social-semantic specifications). A class of discursive productions of mediatic nature is observed and has been shown as an effort in visually formalizing not only a description of these situations but, above all, a way of experimenting them. The main point in these works consists, precisely, in rescuing, through the practice of the experimented sense, the visibility of what has almost become invisible in our society by the debilitation of their recurrent exhibition. Thus these exhibitions are defined as a regime conditioned to the "ways of seeing", used here from the point of "making sense" and not only as the consummation of a simple presence in front of the eyes. To approach the regime of visibility implies in recognizing, in visual discourses, the mechanisms of articulation of presences and absences accomplished in acts of showing or hiding, just as showing itself or hiding itself, depending on the instance of the image analysis. In short, procedures submitted to the modalizations of being able and wanting "to be or not to be" seen. For the development of the present idea, some images, representative of conflicting forms of visibility will be examined. These images are capable of association with the discussion of the absence and the presence in the formalization of seeing/being seen, manifested in the plastic level of images, in close relation with the constitution of their own subjectivity in the circuit of human political and social dynamics.

Entre as diversas formas de relação dos atores sociais, amparadas nos regimes de visibilidade ( poder, querer, dever, saber ver e ser visto ), interessa-nos particularmente, no presente trabalho, examinar, de partida, situações de comunicação em que as articulações "escópicas" (Landowski, 1992) estejam fundadas na tensão entre poder ver e querer não-ver , concebendo-se a primeira como as formas de controle político e social exercidas pelo Estado e a segunda como uma manifestação da indiferença, ou do não-reconhecimento da sociedade como um todo, concernente a certos segmentos sociais.

Escolher as modalidades do poder e do querer como determinantes de alguns regimes do ver, implica necessariamente considerá-las em sua emergência numa situação de comunicação, portanto no quadro de, pelo menos, dois tipos de protagonistas, em que de um lado se assume essa postura do controle ou do não-reconhecimento e de outro, respectivamente, o desejo de não ser visto ou de querer ser visto .

Distintamente, então, do debate da visibilidade em termos de sua exploração espetacular, sobretudo pelas mídias, ou pela vertente de sua crise (BAITELLO Jr., 2005), em vista da saturação do que se vê (e dos modos recorrentes como se faz ver da parte dos encenadores e dos operadores do espetáculo), nosso trabalho propõe-se adentrar pelos meandros da visibilidade no jogo que estabelecem certos micro-universos de atores sociais para garantir condições mínimas de voz ou sobrevivência na vida comunitária. De um lado, esse jogo se sustenta sobre a necessidade de ser visto , ou melhor, pelo agenciamento de dispositivos de diferentes ordens para fazer-se ver , e de outro, paradoxalmente, pela busca da não-visibilidade ou do querer não ser visto .

Facilmente se encontram no mundo contemporâneo exemplos de ambos os fenômenos: no primeiro caso, estão os estratagemas dos Sem-Terra e Sem-Teto no Brasil, em infindáveis performances de atração das mídias sobre seus problemas (alguns dos quais por meio de verdadeiras ações espetaculares); os dispositivos propiciados pelos recursos tecnológicos de comunicação, como a utilização da internet pelos Chiapas, no México, para esclarecimento de sua luta; as paradas gays de alcance globalizado e até mesmo as diversas formas de terrorismo como estratégia política de visibilidade. (WAINBERG, 2005) Em suma, segmentos que são abordados pelos estudiosos, principalmente voltados às pesquisas de gênero e aos estudos culturais, como "visible minorities".

O segundo conjunto compõe-se, ao contrário, de uma miríade de grupos humanos, étnicos, profissionais, entre outros, que se desloca propositadamente de maneira "invisível" no bojo do corpo social, recorrendo aos mais inusitados subterfúgios para fugir ao "poder escópico" das esferas de controle do Estado, e que poderíamos designá-las, por analogia ao seu oposto, e não por adequação do termo, de "invisible minorities". Aqui também proliferam os exemplos: os imigrantes, nas fronteiras dos Estados Unidos ou de países europeus, no trabalho ilegal e na vida clandestina, assim como as formas de "convivência" em zonas de conflito, como em várias regiões do Oriente Médio, da Ásia e da África, só para citar alguns casos.

Essas massas disformes (no sentido de que são, em geral, definidas por meio de traços generalizantes, de cunho estereotipado) transitam nos subterrâneos das sociedades, sob a forma da ilegalidade, e por isso mesmo, forçadas a viver em condições desumanas. Por isso, são igualmente obrigadas a criar dispositivos veridictórios da ordem das aparências, pautando seus modos de existência e de ação seja pelo segredo ("é mas não parece"), seja pela mentira ("parece mas não é"). ( Dicionário de semiótica , GREIMAS & COURTÉS, 1979, verbetes "segredo" e "mentira", p. 391 e 273) Os dois grupos não se dividem, porém, como pólos opostos, dicotômicos, da complexa teia social. Ambos constituem o mesmo conjunto daqueles que, por se situarem fora dos quadros institucionalizados do "stablishment", engendram estratégias políticas de ação, ou adequação, para melhorarem suas qualidades de vida: sobrevivendo entre outros na clandestinidade, assumindo, muitas vezes, o ponto de vista de outrem sobre si mesmo; reunindo-se em organizações em que só então se reconhecem como parte de uma totalidade e adotando uma "intimidade de ordem inter-individual ou comunitária (LANDOWSKI, 1992) que lhes outorguem a consciência de um "nós", ainda que "outsiders". (ELIAS & SCOTSON, 2000) Em suma, tentam erguer suas vozes perante o outro, mesmo que na aparência do camaleão, do urso ou sob outras aparências. 1

Embora o presente raciocínio esteja assentado na questão da inclusão ou exclusão visual, não se deve restringi-la ao conceito de uma mera visualidade diante da presença de outrem (ver-se-á mais adiante que a visibilidade tem maior alcance), mas ao seu corolário de inclusão-exclusão social. Assim, os dispositivos engendrados pelo indivíduo para tentar adequação ao grupo social, em atitudes de conformação, constituem buscas de reconhecimento, do mesmo modo que as mais diversas manifestações de confrontação visam dar evidência à sua visibilidade no conjunto da sociedade.

esignando-se as primeiras ações como programas de assimilação e as segundas de confrontação, relações intermediárias podem ser estabelecidas com base na negação respectiva de cada um dos pólos, do que decorre a emergência de um jogo tensivo e dinâmico entre diferentes possibilidades de relações intersubjetivas: assim, a negação da tentativa de confrontação configura uma espécie de retraimento, passível de se manifestar sob a forma de uma afirmação das próprias raízes, enquanto o ato de negar a assimilação gera a indiferença, dado como condição essencial de não querer não ser visto . Tendo em vista que a opção de ser visto ou não pressupõe, de outro lado, alguém que quer ver ou não, algumas articulações modais de formas de interação social podem ser aventadas na perspectiva da visibilidade visual e do reconhecimento social. Assim, o querer ver das agências de controle desencadeiam um querer não ser visto daqueles que se situam à margem da legalidade, como no caso de imigrantes clandestinos; o querer não ver do corpo social, representado pela figura do Estado, pode originar formas de ostentação da visibilidade de certos grupos sociais, ou o querer ser visto , expresso em passeatas, manifestações, como o exemplo dos atos envolvendo o movimento político dos Sem Terra; o querer ver expresso na curiosidade estimulada por setores da economia turística em relação à vida nas favelas (o chamado "poorism", como fusão das palavras inglesas "poor" e "tourism" - V. Folha de São Paulo , 24-06-2007) esbarra na indiferença - não querer não ser visto - daquele que constitui o foco de atenção, ou no retraimento - não querer ser visto - do outro, ensimesmado em sua própria cultura familiar ainda que cidadão de uma outra sociedade, ilustrado pelas aglomerações étnicas em regiões específicas dos grandes centros, do que resultam experiências de mal-estar freqüentes, um "situar-se dentro ainda que estando fora" expresso em múltiplas ocorrências, algumas das quais chegando ao paroxismo de atitudes violentas. Por isso, é comum a passagem do retraimento à confrontação (sobretudo de ordem subjetiva), assim como o resvalamento de cada uma dessas posições em articulações complexas, para as quais são acionados mecanismos de dissimulação, criação de simulacros e relações oscilatórias.

O que interessa, neste trabalho, tendo sido efetivada essa breve discussão preliminar, é o fato de que, assim como as condições "normais" da visibilidade - dos grupos políticos, de agentes do governo, de personalidades artísticas e públicas - exigem focos de luz sobre si, nossos grupos também necessitam de condições favoráveis de visibilidade (LANDOWSKI, 1992) para se fazerem ver: sob as luzes da ribalta ou nos interstícios do entre - nas frestas, sombras, pelos rastros de uma presença.

De um modo geral, é aos veículos de comunicação que tem sido outorgado o papel de mediar, pelos regimes do ver, essa relação entre as funções assumidas pelos diferentes atores sociais, e sua ação aparece como voz delegada de uma das partes. Assumida na superfície como um canal de informação, sua práxis consiste em reduzir o discurso "informativo" como o locus de um embate, em que cada lado tem suas versões e razões.

Por conseguinte, a experiência vivida de colocar-se do lado de cá das normatizações sociais tem sido, com muita freqüência, tratada pelo viés de relatos - verbais e não-verbais - da competência de destinadores legitimados pelo domínio de um saber, com base no qual os leitores/espectadores aderem ao contrato de que a imprensa vê e mostra o que vê. (VILCHES, 2002, p. 205). Há, no entanto, maneiras de olhar e expressar a nossa empiria na realidade sob a forma de interações sensíveis, em que a compreensão dos fatos não se funda numa mera decifração cognitiva, de caráter semântico, mas no ato de sentir comum, que transforma aquilo que era notícia em verdadeiro acontecimento estético. Por estético, não se concebe aqui a pura artistização das coisas, mas a sua apreensão em efeitos de sentido partilhados decorrentes dos modos como os objetos culturais se apresentam à nossa capacidade de compreensão e fruição. É sobre esse tipo de discurso que nossa análise se deterá, restringindo-se a exemplos que a fotografia documental tem nos proporcionado. Embora o foco seja a fotografia, alguns casos expressivos do cinema serão utilizados a título de contextualização de nossas reflexões.  

Investido do papel de outorgar visibilidade a tais grupos, o fotógrafo se coloca antes de tudo como alguém que se integra ao corpo social, sofrendo, portanto, todas as inflexões que o "senso comum" impõe aos modos de perceber e conceber os vários atores sociais. Com isso, quer-se dizer que lhe atribuir a função de um porta-voz desses segmentos pode resultar em interpretação forçada e artificial de um ato consolidado no calor da hora, de maneira espontânea e determinado por condições específicas. Não se trata, por conseguinte, de decifrar as possíveis mensagens de um autor, mas de examinar como as formalizações visuais, por recursos que vão das escolhas do que apreender e de como capturar as experiências do real, até as suas elaborações plásticas mais sofisticadas, permitem reconhecer as tensões discutidas anteriormente, em encontros passíveis de serem afetados duplamente por leituras intelectivas e compreensivas, concebendo-se esta última no sentido dado anteriormente de apreensão definida, em princípio, por vinculações de ordem afetiva. O certo é que o fotógrafo se coloca sempre como alguém que quer ver (ao contrário de algumas posições arroladas acima), ainda que seja para expor aquilo que normalmente não se vê ou que não quer ser visto . É desse ponto de vista, de um olhar aguçado sobre as diversas formas, ou tentativas, de inter-ação social, tais como assumidas por atores discursivos em contextos, circunstâncias e momentos políticos, que o desejo de ser visto será examinado. Pergunta-se de que modo a elaboração fotográfica permite, sob a aparência simples de reprodução de um fragmento de realidade, "revelar" o invisível do tecido social em sua trama elaborada de presenças evidentes, ocultas, insinuadas, distantes, em convivências de efeitos leves ou pesados.

Buscando elaborar diferentes regimes de visibilidade, imagens de quatro trabalhos documentários foram selecionadas, que não pretendem ser representativas de todo o espectro de interações sociais capazes de acontecer na complexa experiência da vida em comunidade, e sim tão-somente sistematizar as articulações acima aventadas em situações visuais concretas, cientes de que elas se reproduzem em múltiplas ocorrências nas sociedades atuais. Essas situações revelam com expressividade o poder das fotografias no sentido de recriarem as condições de apreensão das experiências por meio de dispositivos sensíveis.

Quatro autores e oito imagens constituem o corpus de análise, caracterizado por trabalhos autorais, no sentido de que cada fotógrafo pôde expressar-se da forma que considerasse a mais adequada. De suas escolhas temáticas e plásticas resultou um documento que traduzisse visualmente uma situação humana e social.

Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro, documentou os processos migratórios em quarenta e um países entre os anos de 1993 e 1999. Entre os focos do projeto, registrou os trabalhadores do MST (Movimento dos Sem-Terra) no Brasil. Seu projeto, nomeado Êxodos , foi publicado em 2000, buscando fazer um panorama da situação migratória mundial na virada do século. Alex Webb, fotógrafo americano, acompanhou por um período de 26 anos a questão da fronteira entre México e Estados Unidos, dando origem ao livro Crossings - photographs from the US-Mexico border . Apesar de seu foco principal ser a mescla cultural que acontece no que ele considera um terceiro país - a região da fronteira -, o lugar que cada um pode ocupar nesse espaço é bem demarcado por seus registros visuais. Gilles Peress, fotógrafo francês, entre os anos de 1979 e 1980 foi para o Irã fotografar o seqüestro da Embaixada Americana por estudantes. Chegando lá, ao perceber as mudanças radicais pelas quais passava o Irã, decidiu fazer um documento pessoal do país. Esse trabalho deu origem ao livro Telex Iran . Thomas Holton, fotógrafo americano de origem chinesa, documentou uma família de Chinatown, em Nova Iorque, em um projeto que chamou de The Lams of Ludlow Street (Os Lams da Rua Ludlow). Seu objetivo era conhecer o interior de um local visto apenas de forma externa e estereotipada por turistas.

As imagens de cada autor apresentam características semelhantes que conduzem a leituras específicas nas articulações de visibilidade. Porém, são exemplos escolhidos para esse trabalho, não reduzindo nenhum dos projetos que representam a uma única elaboração visual.  

As imagens de Sebastião Salgado, por exemplo, apresentam uma idéia de confrontação entre quem quer ver e quem quer ser visto . As pessoas estão de frente ou levemente de lado e seus gestos e movimentos são de avanço. Eles vêm de encontro ao (ou ao encontro do) olhar do fotógrafo (e por extensão do leitor), respondem à sua presença, em diálogo enunciativo. Graças a essa convocação é que o ato da leitura das imagens possibilita a sensação do embate, pela presença maciça do ajuntamento humano na figura 1 e o envolvimento do círculo de pessoas, ocupando toda a superfície da imagem na figura 2. A ocupação física das pessoas demarca verticalmente o horizonte entre a terra e céu, fraturando a estabilidade das linhas distantes e contínuas. Na figura 1, esse corpo de linhas verticais estende-se até o final do enquadramento superior e inferior rompendo qualquer evidência do espaço natural. As pessoas ocupam visualmente o enquadramento, o espaço antes vazio. A paisagem é dominada por elas, principalmente a área inferior, onde a massa humana delineada sedimenta o espaço da terra. As foices e enxadas prolongam o movimento dos braços, surgem do corpo humano e invadem a parte superior, marcando a área mais clara do céu. Esses constituintes da imagem, assim organizados, remetem à idéia de uma paisagem natural, composta pelo solo - as pessoas - e sua vegetação contra o céu - foices, enxadas. Em suma, não só ocupam o espaço natural, como se mesclam a ele. Na figura 2, a ocupação vertical é menos massiva, mais pontual, porém a dinâmica formada pelos corpos sugere uma inversão das linhas de perspectiva pelas quais a ótica fotográfica trabalha. O triângulo que se forma, tendo como vértice o homem que está mais próximo do fotógrafo/leitor e como base os homens no horizonte, todos se dirigindo na direção do fotógrafo/leitor, traz de volta o olhar condicionado a mergulhar na imagem. Ao acompanhar a perspectiva ótica de entrar na imagem e caminhar para planos distantes (o horizonte, nesse caso), o fotógrafo/leitor é convocado a reter-se nos planos mais próximos. Essa estrutura, além de prolongar e dinamizar a linha tão demarcada e estática do horizonte, reforça a confrontação entre quem e quem é visto . Ainda sobre a dinâmica das linhas, note-se que os homens caminham por uma faixa de terra trabalhada para plantio, reforçando a idéia de dominação do espaço, tanto pelo trabalho realizado, quanto pela demarcação de terra que cada um, com seu próprio corpo, assume para si. Considerando-se o grupo fotografado, os trabalhadores do MST, a idéia de confronto é acentuada.

Alex Webb, por outro lado, interage com quem quer não ser visto . Para traduzir essa situação, elabora suas imagens com elementos que ocultam quem é visto , principalmente utilizando-se do intercâmbio entre sombras e luzes. As pessoas nas imagens estão em áreas de sombra ou projetam a própria sombra sobre elementos. Elas são demarcadas como vestígios de alguma pessoa, porém sem nenhum traço que as identifique. Em contraste, as fotos apresentam as sombras cortadas por áreas de extrema luminosidade. Na figura 3, enquanto dois homens caminham numa área sombreada do espaço enquadrado, o limite entre a área de sombra e luz é desenhada pela projeção da sombra de diversas pessoas que estão numa fila para conseguir um visto para os Estados Unidos. Sua projeção cai sobre uma construção clara, com uma parte extremamente iluminada. Como fundo, um azul saturado de um céu limpo. Cria-se, assim, uma dinâmica entre esses três planos visuais. Os dois homens na sombra (eles estão ali, apesar de não serem identificados), as pessoas projetadas em sombra (eles fazem parte do extra-quadro), e a ausência completa de qualquer traço humano na área iluminada (topo da construção e céu). Pode-se dizer que a ausência humana segue em três níveis - a ausência de identidade, a ausência do físico e a ausência total. As duas áreas de luminosidade - sombra na parte inferior e luz na parte superior -, além de representarem duas situações de visibilidade também simbolizam os dois lados de uma fronteira, que os homens só conseguem transpor virtualmente em forma de sombra. Já na figura 4, a dinâmica criada pela relação de sombras e luzes é reforçada pela distância estabelecida entre o fotógrafo/leitor e cada pessoa do enquadramento. O primeiro plano, centralizado, apresenta um balcão com potes. A partir desse balcão, vestígios de homens são vistos: uma pessoa apresentada apenas por parte do torso e mão iluminados (sua cabeça e corpo estão escondidos na sombra e atrás de um balcão), dois homens que seguem em direção opostas aparecem como sombras (um projetando sua sombra contra a parede e outro sombreado pela falta de luz), e um último sujeito, ao fundo da foto, com pouca definição, que parece correr assustado. Nenhum desses homens é apresentado por inteiro - cada um deles é parcialmente eliminado por uma característica visual (estar atrás de uma barreira visual - balcão -, estar no extra-quadro, estar em área sombreada, estar muito distante). Enquanto os objetos - o balcão e os potes -condensam e centralizam uma área de atenção, os homens dispersam esse foco. Cada um deles atua em direção oposta ao balcão e ao fotógrafo/leitor. Eles funcionam como uma força centrífuga, ocultando suas identidades nos deslocamentos. Embora sejam quatro homens que agem em direções e formas diferentes, representam uma mesma situação social.

Abordando uma condição próxima a do ocultamento, o trabalho de Gilles Peress reflete um certo retraimento do sujeito fotografado, expresso aqui pelo não querer ser visto . Tanto nos gestos, quanto nas posições que as pessoas ocupam em relação ao fotógrafo/leitor, as fotos acusam uma atitude de recolhimento, uma preservação da própria identidade. A figura 5 mostra fumantes de heroína em rua de Teerã, e, apesar de enquadrar diversos homens, a maioria está de costas e agachada. O sujeito mais próximo do fotógrafo/leitor, além de curvado, cobre a cabeça com o casaco, passando a imagem de um corpo disforme e sem cabeça. No segundo plano, um homem de perfil cobre a cabeça comum cesto que apóia no ombro. É o sujeito de maior destaque na fotografia, pois além de estar em movimento, suas vestes pretas e iluminadas contrastam com uma faixa de luz desenhada pelo sol. Os outros homens, em sua maioria, formam uma massa de corpos agachados. Todos se retraem, num gesto consciente ou não, ao olhar de quem quer ver. Pela repetição do gesto, uma linha entre o homem no primeiro plano - canto inferior direito - e os homens que seguem agachados junto à parede é formada, como se eles se repetissem num movimento contínuo para o ponto cego da perspectiva. Também por essa razão o homem de preto se destaca, pois é o único sujeito que rompe com a continuidade, ao se deslocar para a lateral esquerda da imagem. Seu rosto é velado, porém sua atitude física - ereto e andando - e sua ocupação visual na imagem são pronunciadas. Existe a preservação da identidade, mas o destaque da ação. A figura 6 também apresenta uma massa de corpos que segue para o fundo da imagem, estando de costas para o fotógrafo/leitor. Elas formam, no entanto, um conjunto mais coeso e horizontal, bloqueando, em parte, um trajeto visual em perspectiva. Elas são dissimuladas também pelas vestes e pelos gestos de recolhimento, como na imagem anterior. Porém, uma roupa infantil branca (manta ou casaco) de textura felpuda e formas arredondadas rompe com o domínio escuro das mulheres. Estando em um primeiro plano, ela marca a imagem toda, como um respiro para o pano de fundo que apresenta. A criança que a veste é completamente velada pela roupa. O pouco da forma que apresenta remete a brincadeiras infantis de vestir-se como fantasmas. Os únicos rostos que voltam o olhar ao fotógrafo/leitor é o da mãe, num gesto de quem protege a criança ao mesmo tempo que é protegida por ela, e o de uma menina - no canto inferior direito, que veste preto com um cachecol claro, como uma passagem entre os tons e idades da mãe e filha. Apesar de uma formalização visual marcante que compõe as imagens de Gilles Peress, não pode-se deixar de levar em conta que o retraimento apresentado pode surgir tanto pela forma de o assunto se comportar perante a câmera, quanto pela tomada surreal de uma situação, implicada no modo ocidentalizado de o fotógrafo encarar esse país.

Quando Thomas Holton começou a fotografar Chinatown, em Nova Iorque, buscava imagens que pudessem representar a situação dos imigrantes e descendentes chineses que viviam nesse espaço turístico e estereotipado. Resolveu, por fim, focar na intimidade e rotina da família Lams, acompanhando-a na sua dinâmica cotidiana, junto a qual encontrou receptividade ao seu trabalho. Diante do interesse manifesto do fotógrafo de querer ver , a família reagia segundo a modalidade do não querer não ser visto , sem se incomodar, portanto, com a curiosidade do outro e sem, igualmente, buscar mecanismos de ostentação. Essa atitude, apesar de surgir na intimidade de uma família, acaba por representar uma relação que os moradores e trabalhadores de Chinatown têm em relação aos turistas. As imagens 7 e 8, escolhidas para análise, possuem uma estrutura visual próxima em muitos aspectos. Ambas são formadas por diversas pessoas e a dinâmica entre elas é importante; existe um primeiro plano formado por duas pessoas desfocadas; o segundo plano é formado por um homem focado que retorna o olhar para o fotógrafo/leitor. Além disso, o posicionamento do fotógrafo/leitor é próximo ao assunto, sugerindo uma intimidade familiar. No primeiro plano da figura 7, mãe e filha se olham como uma imagem dupla de espelho. Na figura 8, dois meninos muito parecidos, um como duplo do outro, estão de perfil olhando para um mesmo ponto - talvez uma tv? Os jogos de duplos podem sugerir uma repetição, uma continuidade, um desdobrar-se, ao mesmo tempo que representam o olhar que se volta, no caso da mãe e da filha, e dos olhares que visam um mesmo ponto, no caso dos meninos. De qualquer forma, o primeiro plano está indiferente ao fotógrafo/leitor. Já no segundo plano das duas imagens, os homens (talvez o avô e o pai), voltam seu olhar para aquele que quer vê-los . Trata-se, porém, de um olhar casual (corroborado com a gestualidade corporal de "estar à vontade"), ou seja, como um familiar observa outro na sua casa, o que torna o fotógrafo/leitor ainda mais íntimo da situação.  

A análise dos quatro conjuntos de fotos conduz a algumas sistematizações que podem ser investidas no quadrado semiótico, pelo fato de permitir uma melhor visualização do que foi discutido. Sob a determinação do olhar do fotógrafo, imbuído do papel de querer ver e de fazer ver , as relações se manifestaram sob as seguintes formas:

Essas posições não são rígidas; pelo contrário, implicam em geral um modo de estar diante do outro determinado por condições socioculturais específicas, por estratégias políticas, de caráter coletivo ou individual, de presença no mundo em relações de convivência. Compreende-se, assim, que o ato de querer não ser visto possa ser exemplificado por uma atitude solitária, seletiva, de interação, como a representada metaforicamente pelo filme Casa Vazia , do sul-coreano Kim Ki-duk, em que o personagem recorre a subterfúgios de invisibilidade para não ser identificado, a não ser diante de quem ele deseja, mesmo deixando marcas de sua presença nas casas que visita. Do mesmo modo, as tentativas frustradas de assimilação podem resultar em atitudes agônicas de uma certa indiferença, de um deixar-se levar, como o mostram as fotografias de Arturo Rodriguez, dos refugiados africanos na costa da Espanha. A aparente postura da indiferença, e de uma certa assimilação, pode transformar-se aos nossos olhos diante da surpreendente notícia de um rapaz que adquire visibilidade nas mídias da noite para o dia por atos de extrema violência, como aconteceu com o rapaz sul- coreano fartamente exposto nas mídias recentemente, responsável pela chacina no campus da Universidade de Michigan, ou com os exemplos recorrentes de terrorismo, rebeldia, violência, de sujeitos reputados pela comunidade como seres integrados e "normais".

Mesmo consideradas em suas singularidades, as imagens aqui analisadas não devem ser apreendidas de maneira estanque. Elas adquirem nuanças conforme a perspectiva com que são abordadas e pressupõem uma dinamicidade passível de ser expressa por percursos sintáticos: Alex Webb, por exemplo, encara a fronteira como um terceiro espaço, local de reunião e de hibridismo, enquanto a leitura privilegiada de suas fotos neste trabalho foi a de uma atribuição de valor conotativo ao jogo de sombras com que trabalha. Tais imagens reportam-se a lugares de transição, que, como tais, podem ser interpretados segundo seus possíveis programas de mudanças futuras, em que o querer não ser visto venha a se desdobrar em estratégias de visibilidade, como a da confrontação ou da ostentação (esta última não explorada neste ensaio - V. Landowski, 1992, págs. 85-102). As fotos de Sebastião Salgado, a partir inclusive da interface que estabelece com o verbal do título que as engloba - Êxodos - remetem a possibilidades de deslocamentos contínuos, de perda de território, e, do ponto de vista de sua compleição visual, de espaço que vai ser ultrapassado para além das bordas do enquadramento da imagem, em suma, de um programa permanente de buscas voltadas a retraimentos (em que a condição do migrante se deixa aspectualizar pela permanência, daí a recorrência aos hábitos e lembranças das origens) e a assimilações. Por outro lado, a impenetrabilidade do interior exposto por Thomas Holton denuncia a intimidade de presenças, gestualidades e cenários familiares, a sensação de um ser comum ainda que na diferença. Quanto às fotos de Gilles Peress, sobre fatos acontecidos nas ruas de Teerã: elas recortam um instantâneo da realidade e uma forma particular de olhar que privilegia o contraste entre o uniforme e o disforme. O não querer ser visto sugerido pelas posturas corporais em atitudes suspeitas, o rosto coberto, os corpos ocultados e espremidos uns contra os outros, não revelam apenas fatos (homens se drogando, a proibição das mulheres iranianas de se exporem publicamente), mas, sobretudo impressões capazes de implicar sensações de indiferença.

As semantizações distintas detectáveis em cada grupo de fotos, assim como a previsibilidade de um conjunto possível de percursos sintáticos que cada imagem pode desenvolver, dentro do próprio grupo ao qual se articula no âmbito do quadrado ou com outras relações potenciais, não satisfaz completamente o raciocínio aqui empreendido. Resta uma indagação importante: como, a despeito das diferenças, tais imagens se aproximam e nos aproximam de seus objetos? Obviamente, tomamos como ponto de partida um regime de interação - o da visibilidade - para abordá-las, mas no trajeto de análise essa categoria teve de ser alargada, na medida em que não pôde ser restringida apenas à questão do visual. Voltamos a esse conceito, visando a retomá-lo no universo das imagens.

Embora vinculadas a um jogo de olhares, primeiramente vislumbrado da perspectiva do corpo social com respeito a certos grupos humanos, e em seguida com base na maneira como fotógrafos os apreendeeram, as imagens escolhidas revelam em sua maior parte actantes fechados em seus próprios mundos: seja porque não se mostram, porque não são mostrados ou porque não nos olham. Ou seja, falando nos termos da teoria da enunciação, são imagens cujo foco enunciativo exprime-se em terceira pessoa, o que gera costumeiramente efeitos de sentido de objetividade ou impessoalidade. Mesmo as fotos do primeiro conjunto (relativo aos Sem-Terra), em que a convocação do fotógrafo-leitor aparece como um fato evidente, não são reveladoras de olhares, mas de presenças corporais que se fazem sentir pesadamente. É nessa direção que pretendemos conduzir o debate da visibilidade, desviando-o da primazia do olhar (LANDOWSKI, 2004, p. 179-191) para situá-lo como forma de presença em que o processo de leitura de imagens seja formulado como um ato compreensivo de certas condições humanas, para além, ou para aquém, dos significados atribuídos ao conjunto das figuras ou aos valores ideológicos que cada leitor manifeste em relação às temáticas desenvolvidas. Para tanto, interferem com expressividade os formantes do plano da expressão, concretizados em jogos de luz e sombras, em tomadas desfocadas, imagens fugidias, olhares insinuados, em corpos diluídos ou adensados nas massas uniformes. Por meio desses dispositivos, desloca-se igualmente, com dificuldade, o olhar do destinatário-leitor, para adentrar as imagens na busca do traço humano visualmente rarefeito (seja por dispositivos de ausência, seja por mecanismos de uma compleição humana transformada), embora onipresente, nos intervalos das fotografias e nas entrelinhas da trama social. A ausência da convocação dos olhares deve ser compreendida, portanto, como um fato ligado à visualidade. Em sua falta, outros mecanismos assumem a responsabilidade de tornar visível ou de criação do efeito de sentir comum, como forte marca enunciativa de subjetividade.   Nessa acepção, a fotografia opera como uma forma de revelação dos vínculos sociais pelo jogo complexo de olhares em que cada sujeito se integra segundo padrões diferenciados de presença e valorização.


Notas:

1 Referência à designação dada por Landowski ao se reportar às formas de alteridade e estilos de vida, na qual o "camaleão" representa a adequação do sujeito a certas aparências de um mundo que não é o seu, embora ainda não disjunto de seu micro-universo de origem, enquanto o "urso" assume a forma do sujeito solitário, fechado em seu próprio mundo e fiel aos percursos que traça. Ao lado desses dois tipos, o autor postula, por relações lógico-semióticas, mais duas possibilidades, a do "dandi" e do "esnobe", que não se encaixam nas formas de relações sociais examinadas no presente texto. (V. LANDOWSKI, 1997, págs. 45-86)


Referencias:

BAITELLO Jr., N. A era da iconofagia . Ensaios de comunicação e cultura . São Paulo: Hacker, 2005.

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Kati Eliana Caetano
Professora titular da Universidade Tuiuti do Paraná.
Anuschka Reichmann Lemos
Professora da Unicuritiba, atuando como docente dos cursos de Comunicação Social

 

 

 

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